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LIVRARIA ACADÉMICA
J. GUEDES DA SILVA ^
8, R. MÁRTIRES OA LIBERDADE, 12 " >^
PORTO — TELEFONE, 26988 " \
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GALERIA
DE
VARÕES ILLUSTRES
DE PORTUGAL
X." 2
VASCO DA GAMA
GALERIA
DE
VARÕES ILLUSTRES
DE PORTUGAL
J. M. Í.ATLNO COELHO
N/' 2
VASCO DA GAMA
PRIMEIRA PARTE
DAVID CORAZZI- EDITOR
EMPREZA— HORAS ROMÂNTICAS
|u-Rua da Atalaya — 52
LISBOA
Os direitos de propriedade d'esia obra, no Império do
Bra::;ilj, pertencem ao ilL"'o e ex.'>'o sr. commendador Bi-
biano António de Moraes e Almeida, súbdito bra':{ileiro.
Lisboa -Imprensa Nacional- 1882
ADVERTÊNCIA PRELIMINAR
O primeiro numero da Galeria dos varões illiístres
foi consagrado, por occasião do centenário, a comme-
morar o génio do grande poeta, que mais do que ne-
nhum outro portuguez contribuiu para immortalisar a
gloria da nação c tornar ainda, se era possível, mais il-
lustre c celebrado o nome de Portugal.
O cantor dos feitos portuguezes, na primeira e mais
insigne das modernas epopcas, tomara por assumpto
principal o temerário descobrimento da senda marítima
da índia, e enlaçara com esta assombrosa empreza a his-
toria do povo portuguez e a conimemoração dos seus
heroes.
Ao poeta devia segulr-se naturalmente, como fazendo
pela navegação e pelas armas o que o vate celebrara
nos seus cantos, o maior de quantos portuguezes illus-
traram pelo esforço os fastos nacionaes; ao Camões,
Vasco da Gama. São estes, de feito, os luzeiros mais
intensos de toda a nossa gloria. Poderão extranhos
porventura ignorar os nomes de outros varões illustres e
beneméritos pelas suas façanhas bcllicosas ou pela sua
valia litteraria. Mas se no extenso catalogo dos c]uc
honraram a pátria pelo pensamento ou pela acção, a
indifferença e o esquecimento riscassem os Pachecos,
os Albuquerques e os Castros entre os homens de es-
pada vencedora, e os Sousas, os Vieiras, os Bernardes
entre os homens de engenho inimitável, ainda a mais im-
piedosa mordacidade não ousaria cancellar estes dois no-
mes, — Camões e Vasco da Gama. Ainda elles, conso-
ciados na mesma grande idéa nacional, haveriam de
levar á posteridade a fama portugueza, quando no de-
correr dos séculos, não restar outra memoria de que um
dia, n'um recanto do Occidente, existiu e floreceu um
povo de heróicos aventureiros, que a todas as nações se
antecipou em traçar a communicação com o Oriente.
Camões c o génio portuguez, Vasco da Gama o brio
nacional. Um é o espirito, outro a força; um o pensa-
mento, o outro a acção; o estro e a audácia. Um liga a
litteratura de Portugal a do restante mundo civilisado,
o outro prende e enlaça intimamente os fados gloriosos
da nação aos futuros destinos da humanidade.
Por isso o segundo logar da Galeria, — segundo no tem-
po, egual na honra, — pertence agora ao immortal desco-
bridor.
Era intenção do auctor resumir e compendiar n'um
só volume a vida do grande navegador. Mas os feitos,
de que ella se entretece e o mérito singular da sua empre-
za, ficariam talvez menos perfeitamente comprehendidos
se .não a precedesse um estudo consagrado a expla-
nar os seus antecedentes, o progresso das nossas navega-
ções desde as primeiras tentativas do infante D. Henri-
que, e os esforços empenhados antes dos nossos marean-
tes, nos tempos mais antigos e durante a edade média,
para domesticar o Oceano rebelde a quilhas aventureiras,
para circumnavegar a costa de Africa e communicar por
terrestres excursões ou marítimas emprezas as terras do
Occidente ás regiões orientaes.
Egualmente convinha elucidar quaes eram na Europa
nos tempos medievos as noções mais correntes e seguidas
sobre o conhecimento do nosso globo, para que em pre-
sença dos erros e phantasias então enraizadas e predo-
minantes nos espíritos de quilates mais subidos, se
podesse ajuizar em que proveitos para a civilisação e
para a sciencia haviam redundado as nossas traballiosas
e incessantes navegações, proseguidas no espaço de quasi
um inteiro século.
E também aquelles prolegómeno« pareciam necessá-
rios para que os portuguezes, satisfazendo-se e conten-
tando-se da gloria immortal e verdadeira, não quizessem
ainda mais avolumar os próprios loiros, escurecendo e
deslustrando o que antes d'elles podessem outros menos
arrojados e felizes haver emprehendido e acabado.
Era a principio contraído a breves paginas um tal
preambulo ou introducção. Mas como succede sempre
em largo assumpto, em que é preciso ler e conferir
muitos escriptos e fazer ampla colheita de notas e apon-
tamentos, foi crescendo, ainda que abreviada, a tama-
nhas proporções, que não cabia com a biographia do
Gama n'um só tomo, sem que este fosse de volume des-
mesurado.
Pela copia de noticias, que se haviam accumulado no
preambulo, e poderiam interessar aos que ainda prezam
a memoria das nossas passadas aventuras e grandezas,
pareceu ao editor ser mais conveniente fazer d'estas
noções preparatórias um tomo separado, e repartir cm
dois um thcma, que a principio o auctor se propozera
conglobar n'um livro único. Assim o estudo acerca do
illustre navegador consta de duas partes; a primeira
commemora Os Precursores de Vasco da Gama ; a segun-
da historia os seus feitos guerreiros e navaes nas suas
três viagens. D'esta maneira o leitor achará summaria-
das as principaes noções sobre a circumnavegação da
Africa e a communicação com o Oriente desde os mais
antigos tempos ate que no vice-reinado, em que Vasco
da Gama termina com a existência os seus triumphos,
está já dillundido e cimentado no Oriente o império por-
tuguez.
A memoria d'csta heróica fundação servirá ao menos
de consolar os que hoje contemplam e lastimam a que
ponto deixámos abater os nossos brios c perder quasi
inteiramente o theatro das mais brilhantes glorias.
os PRECURSORES
DE
VASCO DA GAMA
CAPITULO I
o SÉCULO XV
Ce temps cst . . . cclui de la plus grande
activitc extérieure des hommes, c'est un
temps de voyages, d'entrepnses, de décou-
vcrtcs, d'inventions de tous gcnres. Ccst
Ic temps des grandes expéditions des Por-
tugais le long des cotes d'Afrique, de la
dccouverte du passage du cap de Bonne
Esperance par Vasco de Gama.
GuizoT, Hisí. de la civilisation cu Eu'
rope, XI leçon.
Quando as sombras da edade média começa-
vam de tingir-se com os primeiros arreboes do
Renascimento, duas inspirações e dois anccios
agitavam o espirito europeu, já porventura fa-
tigado da sua vida interior e domestica, já prc-
sago da multiforme e dilatada civilisaçáo, que ao
pleno despertar da intelligencia havçrja de con-
VARÕES ILLUSTRES
verter a velha Europa em luzeiro de toda a hu-
manidade e em soberana região do globo inteiro.
Anhelava por sair da gleba conhecida e da
própria quadra em que vivia. Era como que uma
forçosa necessidade do seu novo organismo es-
piritual o romperas fronteiras, que a cingiam, e
arremeçar-se aventureira pelo espaço e pelo tem-
po, inquirindo e prescrutando as paragens mais
remotas e as eras já passadas. O problema, que
lhe incenderá a phantasia e a rasão, era o de
conhecer e contemplar o género humano em toda
a sua completa evolução e unidade, ligando o
pretérito com o presente, e o de alargar os lin-
des geographicos, vinculando á terra conhecida
ignotas ou mal sonhadas regiões.
Não estivera de todo amortecida durante os
séculos medievos a curiosidade nos espíritos
mais lúcidos e nos engenhos de eleição. Quando
as trevas da barbárie primitiva se foram adelga-
çando, os grandes monumentos do pensar anti-
go e clássico se iam deixando entrever e admi-
rar, envoltos em neblina de vago mysticismo.
Atou-se, como era dado em tempos tão escas-
sos, a tradição das grandiosas civilisações, que
tinham meneado antigamente o sceptro do uni-
verso. Deletreou-se nos gregos e romanos escri-
VASCO DA GAMA 5
ptores o que haviam registrado em suas obras
acerca da terra e da natureza, vagamente deli-
neada e conhecida. Floreceram, a uma parte, as
escolas, onde espiritos de quilates tão subidos,
como Roger Bacon, e S. Thomás, e Alberto
Magno, e Vicente Bellovacense, e Brunetto La-
tini, enlaçavam as doutrinas da antiguidade ás
suas próprias phantasias. Principiavam, a outra
parte, as viagens e aventuras áquellas longínquas
e cubicadas regi5es, de que os antigos haviam
deixado o rasto nebuloso em seus escriptos. Te-
merários aventureiros, como o veneziano Marco
Polo, o inglez João de Mandeville, o francez Gui-
lherme de Rubruquis, haviam já levantado uma
ponta sequer do espesso véu, que trazia enco-
bertas e defesas á curiosidade egoista de euro-
peus áquellas terras, as quaes a imaginação se
comprazia em debuxar e colorir de mil encanta-
das maravilhas.
Os laços porém, que vinculavam ao mundo
conhecido as terras orientaes e africanas, eram
ainda tão frouxos, tão incertos, tão entretecidos
de fabula e conjectura, que até o fecundo alvo-
recer do Renascimento se podia haver como per-
dida para o saber e o commercio dos europeus
a máxima porção do globo inteiro.
VARÕES ÍLLÚSTRÊS
As terrestres e raras excursões, que poucos
viajantes curiosos haviam emprehendido, che-
gando alguns, como Marco Polo, até os últimos
confins do Oriente, eram emprezas isoladas sem
nexo, nem systema. Ficariam totalmente infru-
ctuosas, se por outros caminhos mais asados e
com maior perseverança e successão os ousados
navegantes do Occidente não houvessem traçado
com a proa das suas caravellas e baixeis, por
mares virgens de lenho e férteis em tormentas,
a estrada real á nova e prodigiosa communica-
ção dos povos mais distantes e ás rápidas con-
quistas da sciencia.
Durante a edade média, se fizermos excepção
doeste ephemero delirio das cruzadas, a Europa
vivera adormecida para toda a inquirição experi-
mental acerca da natureza e das terras, que de-
moravam para alem dos seus limites estreitíssi-
mos. Quando os primeiros clarões da antigui-
dade começaram de novo a divisar-se por entre
frinchas mal abertas, quando os sábios e pensa-
dores poderam ter á mão, incorrectos e mal in-
terpretados, os monumentos da sciencia greco-
romana, o espirito da Europa julgou que mais
nada podia caber no engenho humano, senão o
que os antigos haviam legado em seus thesouros
Vasco da gama
de sciencia e erudição. A natureza parecia que
fielmente se espelhava nos tratados de Aristóte-
les. A cosmographia estava irrevogavelmente
delineada nos dictames de Hipparcho e Ptole-
meu. A medicina estava soberana e indefectivel-
mente legislada nas obras de Galeno e nos ára-
bes commentadores, cujo principado coubera a
Avicena. O universo tivera como que a segunda
creação no espirito omnividente do grande sta-
girita. A terra, com os seus mares e continen-
tes e archipelagos, recebera a sua forma e a sua
repartição pelo dictado irrefragavel dos geogra-
phos alexandrinos. O mesmo dogmático despo-
tismo, que trazia encadeados os ânimos na es-
phera espiritual, tolhendo ou encurtando o voo
aos pensadores menos submissos ao jugo da tra-
dição, imperava geralmente, enleiando o enten-
dimento e a rasão nos dominios do saber. Os
assertos de Ptolemeu ou de Aristóteles tinham
na sciencia e na cosmographia tão inconcussa
auctoridade, como nas doutrinas theologicas os
textos da escriptura, as sentenças dos santos
padres e as decisões da egreja universal. A fé
em certa maneira se humanisava nas escolas e
na forma de theologia convertia-se^ em sciencia
philosophica. A sciencia, por um processo con-
VARÕES II.LUSTRES
traposto, por assim dizer, divinisava-se, e sob o
fanatismo aristotélico, transmudava-se em fé re-
ligiosa. O que o mestre definira passava por lei
inquebrantável. A sciencia fatigava-se e consu-
mia-se a glosar, a inquirir e não raro a des-
figurar por subtis, engenhosas, mas estéreis
commentações o venerando texto da antigui-
dade. Era então a elaboração intellectual da
edade média como se fora uma perpetua rumi-
nação, uma segunda digestão em novo estôma-
go, como de faminto dromedário, que em meio
de arenosa e sêcca plaga, sem uma fibra sequer
da planta mais rasteira, está enganando a fome,
que o devora.
Alguns espíritos, que se arremeçavam com
mais brioso Ímpeto ás paragens nevoentas do
futuro, ousavam algumas vezes deixar a trilha
habitual, e emancipando-se do tyrannico jugo
dos antigos, mal interpretados e entendidos,
podiam rastrear que fora dos tratados de Aris-
tóteles havia a natureza genial, verdadeira,
inexhaurivel, e alem das tábuas geographicas
de Ptolemeu uma terra mui differente da que
elle phantasiára e descrevera. Roger Bacon é
porventura em todo este crepúsculo matinal da
intelligencia, que appellidâmos edade média.
VA^CO DA GAMA
quem mais alto voejou acima dos erros consa-
grados. Estava porém guardada para séculos
mais lúcidos e mais perscrutadores o trocar os
dogmas canonisados da antiga sciencia e geo-
graphia pelo conhecimento experimental, pela
directa interrogação da natureza, e pela con-
demnação das erróneas tradições, que trouxe-
ram por longos tempos algemada a sciencia e a
rasão da humanidade.
O século XV constitue a passagem progres-
siva dos tempos medievos para a nova edade
na Europa civilisada. É a quadra, em que a
europêa christandade, depois de lastimosas con-
vulsões, tem chegado á adolescência e matura-
ção, despindo lentamente a cortiça da barbá-
rie. Estão já constituídas em grande parte as
modernas unidades nacionaes pela victoria dos
imperantes contra a anarchia social do feuda-
lismo. Desapparece para sempre, como quem
é já de mais no organismo da christandade, o
caduco império do Oriente, a extrema e dege-
nerada reliquia da antiga sociedade greco-roma-
na. E para contrapesar a irrupção dos mu-
sulmanos nas extremas oricntaes da Europa
com as hordas invasoras de Mahomet II, dei-
xam de brilhar pouco depois, ao sol brilhante
IO VARÕES ILLUSTRES
das Hespanhas, os crescentes, outr'ora trium-
phaes e conquistadores, nos minaretes e nas
mesquitas de Granada.
Este século xv representa para com o seguin-
te, que é a culminação da Renascença, a mesma
funcção admirável, que na evolução da humani-
dade competiu ao xviii século, como portada c
frontespicio da edade nossa contemporânea. Fo-
ram ambos assignalados por larga e profunda
elaboração, como que trabalhoso noviciado c
preparação para os brilhantes estados sociaes,
que vieram distinguir as edades subsequentes.
Assim como Watt e a primeira machina de va-
por applicavel aos usos industriaes foram os
gloriosos precursores da prodigiosa civilisação
do século presente, assim também a fecunda
invenção de Fust e Guttemberg prenunciam a
nova epocha das sciencias e das letras no es-
plendido florir da Renascença.
A Europa sente no xv século que mais altos
destinos, que os da vida quieta e remansada, a
estão appellidando para novas e grandíssimas
emprezas. Não lhe podem já bastar á nervosa
actividade as guerras interiores e as contenções
domesticas sem fructo e sem valor. Pressente
que uma nova transformação, vagamente sus-
VASCO DA GAMA 1 1
peitada, é já agora necessária ao seu viver. É do
Norte que desponta, com a imprensa, a primeira
e grandiosa innovaçáo, o instrumento precioso
da cultura intellectual. Pois, ao contrario, será
das terras europêas do Meio-dia e Occidente que
ha de brotar e florecer outra rama não menos
inesperada da civilisaçáo universal. Descobre
Guttemberg o apparelho, em que se corporifica
e perpetua o pensamento. Mas é em Portugal
que háo de nascer as mais assombrosas maravi-
lhas, que o prelo e os typos moveis hão de escre-
ver e recontar.
b
CAPITULO II
O TEMPO DOS GRANDES DESCOBRIMENTOS
Buscas o incerto e incógnito perigo
Porque a fama te exalte e te lisonjc.
Chamando-te senhor com larga copia
Da índia, Pérsia, Arábia e da Ethiopia.
Camões, Lusiad., iv, loi.
Por uma singular contradicçáo e paradoxo é o
homem, quando chegado a um grau já eminente
de progresso, de sua natureza aventureiro, quasi
nómada como no primeiro alvorecer de agreste
vida^ social. Apenas as gentes, que demoram
n'um Ínfimo estádio de cultura, achegadas na
condição e nos costumes á bruteza de silvestres
animaes, se contentam de vagar pelas terras do
seu berço, contrahindo as vistas incuriosas a bre-
ves horizontes e cifrando em poucas léguas de
contorno todo o seu mundo conhecido. Em todos
os tempos e logares, em que houve uns princí-
pios já crescentes de cultura, a migração c lei e
natureza dos povos adolescentes. Parece estreita
14 VARÕES ILLUSTRES
a pátria ainda aos que mais a prezam e reveren-
ceiam. Mais se nos afiguram avantajados os pe-
nates, quando os transplantamos a distantes re-
giões, onde a pátria primitiva lance novas raizes e
braceje rebentos mais viçosos e vergonteas mais
opimas. Enlaça-se, como por instincto irresistivel,
a uma civilisaçáo adiantada este anceio insaciá-
vel por dilatar os confins da terra, onde nasceu.
É como se disséramos a aspiração porventura in-
consciente para este venturoso cosmopolitismo,
em que o homem seja a final o cidadão e o cultor
da terra inteira, e em que para um só globo, tor-
nado em património universal e em lar commum,
haja também uma só humanidade, uma só grei.
D'ahi procedem as colonisaç5es e as conquistas,
d^ahi estas correntes ora impetuosas, ora lentas,
que desde a mais remota antiguidade tem vindo
sem cessar sulcando a terra, transplantando com
as tribus e os povos mais diversos, as instituições,
os costumes, as industrias, as idéas, os mythos,
as religiões. A migração poderamos chamar-lhe a
circulação da humanidade. Sem ella, o progres-
so, que é a vida das nações, ficaria inerte, infe-
cundo, immobilisado. Assim também os ventos,
as borrascas, as correntes, que revolvem em on-
das empoladas e em temerosos escarcéus a face
VASCO DA GAMA l5
do OceanO; quando parece que perturbam a
branda quietação e o manso dormitar da natu-
reza, estão fazendo o seu officio beneficente e
assegurando á terra madre a sua perpetua ju-
ventude e a sua inexhausta fecundidade. Do
instincto natural da migração procederam na
antiguidade as famosas expedições de assyrios
e de persas, de macedonios e romanos. D^elle
nasceram, depois de implantado o christianismo,
as irrupções dos bárbaros septentrionaes, que
transfundiram novo sangue no anemico império
do Occidente, já decrépito. D^ahi tiveram a sua
origem as cruentas expedições dos musulmanos,
que hasteando o pendão de um novo credo, en-
thusiasta, ardente, exclusivo, dilataram as suas
conquistas desde as plagas meridionaes da Hes-
panha e da Sicilia ate aos extremos confins da
índia oriental. D'ahi se originou aquelle tumul-
tuoso movimento das cruzadas, em que a Eu-
ropa christã se foi arremessar contra o Levante,
em demanda dos sagrados logares, incunabulo e
metrópole da fé. D'ahi vieram aquellas torrentes
de bárbaros indómitos, que ao mando deTamur-
Lan e Gengis-Khan revolveram a Ásia, des-
truindo as antigas monarchias e fundando novas
dominações.
i6 var5es illustres
De todas as antigas expedições, se houvermos
de exceptuar as de Alexandre, nenhum ou es-
casso fructo redundou á geral civilisaçáo, ao
conhecimento de ignotas regiões, e ao trato re-
ciproco e duradouro das gentes mais remotas e
alheias entre si. Das emprezas europêas, depois
de estabelecida e firmada a christandade, algu-
ma luz se derivou, com que foi dado entrever,
como se fora do átrio e da portada, as magni-
ficências asiáticas. Mas quietado que foi aquelle
sublime devaneio, a Europa tinha caído nova-
mente na sua indolência habitual, remittindo com
as guerras intestinas e as mutuas contendas fra-
tricidas a aspiração, nunca de todo o ponto
amortecida, para novos e extranhos descobri-
mentos.
Os caminhos terrestres eram durante a edade
média e ao alvorecer da Renascença, tão longos,
tão difticeis, tão asados a mil insuperáveis con-
tratempos, que não convidavam a longínquas ex-
pedições. O commercio e communicação dos
povos europeus eram naturalmente limitados e
tardios. Não havia ainda então nações marítimas,
que sustentassem grossas armadas no Oceano e
aventurassem as galés aos lances e aos perigos
de largas navegações. A Inglaterra, cujas frotas
VASCO DA GAMA I7
avassallam hoje os mares e andam continuamente
circumdando o globo com uma cinta de ferro e de
vapor, convertia o esforço e a cubica ás guerras
diuturnas contra a França, ou ás contenções san-
grentas e ferozes entre as facções implacáveis de
York e de Lancaster.
Somente do reinado de Henrique V, ao fin-
dar o primeiro quartel do século xv, data a re-
gular e pautada constituição d'esta poderosa
força naval, que fez depois surgir dos mares e
das tormentas o império e a pujança da In-
glaterra. Era ainda como em débil embryão
este poder, que ora vemos assombrando com as
suas cidadellas fluctuantes e com as suas gigan-
tes machinas de guerra todos os rincões do glo-
bo, onde ha povos que submetter, e mares que
navegar, e riquezas que fruir.
A França, trabalhada pela guerra, empenhada
cm defender ou reconquistar o território contra
a ambição perseverante dos seus irrequietos
vizinhos inglezes, dilacerada pelas cruentas luctas
civis das suas facções, convellida pelas temero-
sas insurreições da jacqiierie e dos maillotins,
mal podia estender as suas vistas alem da terra
pátria, cruelmente assoberbada por quantos las-
timosos infortúnios podem abrumar uma nação
l8 VARÕES ILLUSTRES
e pôl-a a pique da sua ultima catastrophe.
A marinha franceza estava ainda apenas em co-
meço. Eram em grande parte as republicas mer-
cantes e marítimas da Itália, — Veneza, Pisa,
Génova, — quem nas mais urgentes aperturas
ministravam ás d3aiastias de Gapeto e de Valois
os baixeis, com que prover ás suas curtas expe-
dições.
O sacro império de Allemanha, esta anarchica
e mal connexa oligarchia de príncipes e eleitores
seculares e ecclesiasticos, mal podia então pen-
sar em diffundir para longe da Europa continen-
tal os bellicosos brios, que mais tarde, sob o
sceptro de Carlos V, ameaçaram os estados eu-
ropeus com o prospecto da monarchia universal.
A Allemanha, que ainda hoje, apesar do seu
recente poderio, náo alcançou tornar-se uma po-
tencia naval de primeira ordem, era no século xv
apenas celebrada, nos fastos marítimos do mun-
do, pelas emprezas propriamente mercantis, que
assignalavam a poderosa confederação das cida-
des litoraes, a Liga anseatica, ou a Ansa teii-
tonica.
Estavam por estes tempos concluídas as em-
prezas navaes e as correrias devastadoras dos
mkings, d''estes ousados e guerreiros navegado-
VASCO DA GAMA IQ
res da Scandinavia, os quaes haviam infestado
largos annos as costas oceânicas da França, fun-
dado e fortalecido na antiga Neustria o ducado
de Normandia, estabelecido em Nápoles e na Si-
cilia um novo reino, senhoreado a Inglaterra,
confirmado por frequentes irrupções o seu im-
pério nos mares septentrionaes, e dilatado as
suas expedições até ás orlas marítimas da Hes-
panha, e porventura visitado as aguas africanas
do Atlântico.
A Itália, que de toda a Europa latina era a
parte mais vantajosamente avançada ao Melo-
dia, contava nos seus portos do Mediterrâneo
e Adriático aventurosos mareantes. Eram entre
todos preexcellentes os nautas nas poderosas e
arrogantes senhorias de Génova e de Veneza.
Na Itália residia pelos fins da edade média o es-
pirito da nova civilisaçáo, que já ia raiando aus-
piciosa. Parecia que a terra, d'onde voara de ob-
scuro e escasso ninho á dominação universal a
águia romana, tendo já perdido o império mate-
rial do mundo conhecido, se queria desquitar da
sua immensa perda, assumindo novamente, co-
mo cm património hereditário, o primado dos
espíritos. Ali estava para a fé o centro c fanal da
christandade, ali para a rasáo e para a arte o
20 VARÕES ILLUSTRES
cérebro da Europa. Ali principiava a restaura-
ção das letras, quasi obliteradas ou caídas na
barbárie. Ali se iniciava com as republicas, tem-
pestuosas, mas sempre varonis, a aurora da li-
berdade. Ali das faxas byzan tinas ia saindo a
arte moderna. Ali se começava a desentranhar
em preciosos artefactos a industria renascida.
Ali florescia e prosperava a navegação. Mas
era dentro do Mediterrâneo que se exercia qua-
si exclusiva a energia naval italiana. Era prin-
cipalmente para as ilhas e plagas do Levan-
te, para os portos do Mar Negro e para as ri-
bas africanas do Mediterrâneo, que endireitavam
as proas cubiçosas as galés genovezas e venezia-
nas. A guerra ou a ambição predominavam
sobre o ardor cavalleiroso e pertinaz em alargar
por incertas navegações os âmbitos do mundo
conhecido. E é notável que volvendo Marco
Polo de suas largas peregrinações ao declinar
do XHi século, a nova de tantas e tão grandes
maravilhas e opulências, quaes tinha observado
em suas jornadas, não houvesse despertado no
animo, de um povo navegador o enérgico dese-
jo de confirmar ou corrigir por derrotas mari-
timas em mares desconhecidos as prodigiosas
narrações do viajante veneziano.
VASCO DA GAMA 2 1
Mais próximas e comarcans do largo Ocea-
no, d'este mar tenebroso e innavegavel dos an-
tigos, demoravam as Hespanhas. Com a Africa
septentrional eram fronteiriças, mediando ape-
nas um estreito entre estas regiões, que o ódio
hereditário de raça, de crença, e de costumes,
inveterado no discurso de tantas guerras cruen-
tissimas, trazia mais que nunca inimigas e apar-
tadas.
Ao começar o século xv estavam as Hespa-
nhas repartidas em cinco monarchias, das quaes
três, se não no território, ao menos no seu peso
moral se equilibravam, constituindo um systema
peninsular, inquieto, revolto, muitas vezes per-
turbado, porém nunca destruído pela arrogân-
cia e predomínio de uma d^ellas. Portugal, Gas-
tella e Aragão repartiam entre si a maior parte
do território, que obedecia á lei christan. Pelas
encostas meridionaes dos Pyreneus estendia-se
a região peninsular da pequena monarchia de
Navarra. O Islam continuava a dominar no flo-
rente e cultíssimo reino de Granada. Não era a
paz e a alliança durável dos dynastas' o estado
habitual da christandadc hispânica. Os dissídios
c as guerras entre Gastella e Portugal enchem
em grande parte as paginas da sua historia até
22 VARÕES ILLUSTRES
ao duello, tremendo e decisivo, que deu em
Aljubarrota e em Valverde a solemne confirma-
ção á nacionalidade portugueza, apenas depois
eclipsada pela ephemera dominação da casa de
Áustria.
CAPITULO III
PORTUGAL E AS NAÇÕES CIVILISADORAS
Se os descobrimentos se haviam de
estender para o sul e occidentc do
Atlântico, nenhum povo pela sua si-
tuação era para a solução d'este pro-
blema em mais favoráveis circumstan-
cias do que os porluguezes.
Peschel, Hist. da geographia, 2og.
Sobresaía Portugal ás demais nações peninsu-
lares em dois inestimáveis privilégios, que o fa-
davam naturalmente para tentar em proezas
de naval cavallaria o senhorio do Oceano. Estava
já desde muito desapressado das incursões e cor-
rerias musulmanas. Não havia já na pátria
um SÓ recanto, onde se visse tremular o bal-
são outr'ora triumphante do propheta. Gastella,
pelo contrario, tinha como de casa as relíquias
ainda pujantes da mourisma, como se fora a van-
guarda do Islam, estanceando ainda soberba,
até que novas invasões de árabes e berberes pro-
fanassem a gleba sagrada das Hespanhas. A de-
24 VARÕES ILLUSTRES
mais estava Portugal pelo Oceano mui vizinho
das costas africanas e mais senhor de buscar em
terra própria os mouros, que já agora lhe falta-
vam nas fronteiras. Um illustre geographo alle-
máo, fallando da missão histórica dos portugue-
zes no descobrimento de novas regiões ao lon-
go do Atlântico ao sul e ao poente, assignala
n'estas palavras a preexcellencia de Portugal a
este respeito : «Até então (até os primeiros des-
cobrimentos portuguezes) os conhecimentos res-
pectivos ás regiões do globo, por terra principal-
mente se haviam ampliado e quasi sempre na
direcção do occaso para o oriente. Se porém ti-
nham de estender- se ás paragens atlânticas do
sul e do occidente, nenhum povo pela sua po-
sição era mais que os portuguezes accommoda-
do á solução doestes problemas ^)) A paz definiti-
va com o reino de Castella, as forças abatidas e
I « BisherhattensichdieKenntnisscderErdraumemeis-
tens zu Land uiid íiist stets in der Richtung von West
nach Ost erweitert. Sollten sie nach dem atlantischen
Suden und Westen ausgedehnt werden, so war kein
Volk durch seinen Wohnsitz zur Losung dieser Aufgabe
mehr begiinstigt ais die Portugiesen.» Oscar Peschel, Ges-
chichte der Erdkunde (Hist. da geographia), Munich, i865,
pag. 20C).
VASCO DA GAMA 25
quebradas doeste inimigo habitual, a renuncia,
que fizera por então das suas pretensões a
arredondar para o Occidente o herdado terri-
tório, deixavam a Portugal respiro e lazer con-
veniente a emprezas memoráveis e a illustres ex-
pedições.
Não era ainda Portugal tão desproporcionado
como hoje em terras europêas á vastidão das
grandes e poderosas monarchias. Não as havia,
no estricto significado d'este nome, em princi-
pios do século xv. A França tinha ainda não
de todo cimentados e connexos os fragmen-
tos, de que continuou a recompol-a e solidal-a
a politica sagaz e absorvente do sombrio, mas
perseverante Luiz XI. O dominio da Ingla-
terra terminava n'aquelle tempo na fronteira do
Tweed, que a separa da Escossia, então meio-
barbara e silvestre, ciosa e intractavel inimiga
da futura senhora do Oceano. Estavam ainda
longe os dias, em que um soldado de fortuna,
erigindo sobre o derrocado throno dos Stuarts a
sua revolucionaria dictadura, continuando a obra
nacional da implacável mas varonil Elisabeth,
fizesse da Gran-Bretanha uma potencia naval
de primeira ordem, e lhe desse o primado
entre os povos navegadores.
26 VARÕES ILLUSTRES
Apesar do escasso território portuguez, não
havia porventura ao começar o século xv em
toda a Europa uma nação, que mais se avan-
tajasse na fama de seus honrados feitos e brio-
sas cavallarias. A França levara longos annos
para sacudir o jugo opprobrioso, a que os seus
inimigos de alem da Mancha com as celebres
victorias de Crécy, Poitiers e Azincourt a ti-
nham condemnado.
Desde Philippe VI de Valois até Carlos VII cinco
reinados se haviam succedido antes que a Fran-
ça podesse inteiramente expungir da sua fronte
o ferrete ignominioso da servidão ao extran-
geiro. Portugal, pelo contrario, na sua lucta contra
as ambições conquistadoras de Gastella, cele-
brara sempre com um . triumpho cada uma
das refregas, em que entrara com o seu arro-
gante competidor. A desproporção do numero
fora supprida largamente por esta desesperada
valentia, qite nos momentos críticos da vida po-
pular é para as nações como a tensão nervosa
no braço de quem multiplica a força physica pela
excitação do grande perigo e pelos Ímpetos da
honra desairada. A guerra de Portugal contra
Gastella fora assignalada por victorias tão inopi-
nadas e assombrosas^ que haVia dado rebate em
VASCO DA GAMA 27
toda a Europa. Ficara pois sabendo a christan-
dade que n^esta extrema orla occidental á beira do
Oceano vivia e retemperava-se nas armas e no
triumpho um povo batalhador, que em breves
tempos subiria a emparelhar-se e competir com
as mais celebres nações de toda a terra. Estava
pela guerra contra vizinhos importunos consoli-
dada plenamente a unidade nacional: que so-
mente na guerra se fortificam e apertam os vín-
culos da pátria.
O povo levantando por supremo dictador a
um bastardo, o mestre de Aviz, rompera a tra-
dição da supposta legitimidade hereditária, e como
sempre ha succedido, obrigara as classes privile-
giadas a obedecer ao movimento e ao instincto
popular. A lei mental, com que D. João I limi-
tara a successão dos bens da coroa, tornados
em opulento pecúlio de magnates insolentes^
vibrara o primeiro golpe ao poderio da nobreza.
O povo começara a entrar como elemento pon-
deroso na vida nacional. Portugal deixava de
ser uma provinda rebellada contra a cubiçosa
autocracia de Gastella, e convertia-se de vez em
nação independente, com fronteiras signaladas
e perpetuas. Já não era apenas um membro se-
cundário c transitório no systema peninsular,
28 VARÕES ILLUSTRES
onde as monarchias e os estados haviam du-
rante séculos padecido successivas mutações.
Era para com a Europa inteira uma potencia
destinada a tomar e exercer uma funcção de pri-
meira ordem na moderna civilisação. Havia sido
até então a emula guerreira de Gastella. Seria
agora a mestra da christandade, na esteira de
cujas galés aventureiras seguiriam entre assom-
bradas e invejosas as que hoje são nações nave-
gadoras.
Das guerras sanguinosas com Gastella tinha
amda sobejado grande esforço e ousadia no
animo irrequieto e bellicoso. Tantos annos de
guerreiro noviciado com as armas sempre vesti-
das e a fronte sempre ornada de lauréis, fizeram
de Portugal como se fora um só impetuoso caval-
leiro, que do ócio e resfolego momentâneo só
aproveita quanto basta para aperceber-se e con-
certar-se novamente e entrar logo em mais illus-
tre requesta e aventura.
Tinha já pela trégua, e mais ainda pelo te-
mor e desengano de Gastella, seguras as fron-
teiras. Árabes e berberes, que expulsar de ter-
ritório portuguez, nâo os havia já n''aquelLa eda-
de. As conquistas na peninsula seriam ao mes
mo passo temeridade c falsa fé. Mas quasi de-
VASCO DA GAMA 29
fronte de Portugal ficavam as terras africanas.
Que seria se gente portugueza, vingando a an-
tiga aftronta das Hespanhas, fosse primeiro que
nenhum outro povo da Peninsula, levar a guerra
ao seio da inimiga Mauritânia? Não podia ainda
Gastella hastear os seus pendões nas torres do Ge-
neralife e da Alhambra, e proferir a ultima sen-
tença contra a monarchia de Granada. Porque
não iriam portuguezes reptar em seus próprios
lares os muslimes descuidados? E sempre insa-
ciável a victoria. É a gloria como estas aguas,
tépidas e enganosas, que bebidas em copa cin-
zelada e preciosa, mais accendem de que apa-
gam a sede recrescente. Ter vencido é o esti-
mulo a cubicar novos trophéus. As guerras de
Roma ainda infantil contra os samnites abriram
o caminho á conquista de Carthago. Das ruinas
de Garthago poderam as águias voar já trium-
phaes ao senhorio do universo.
Pela tomada de Ceuta, os portuguezes ainda
inscientes dos altos destinos, que a perseverança
e a fortuna lhes traçavam, tomaram posse ma-
terial do quasi desconhecido continente. O gran-
de poder naval é militar, com que segundo os
testemunhos contemporâneos fora apercebida e
realisada a primeira proeza e cavallaria de Por-
3o VARÕES ILLUSTRES
tugal nas terras africanas, denuncia o vigor, com
que soubera da sua apparente mediania tirar
forças e recursos para empreza, ao parecer des-
igualissima á sua povoação e território.
Desde agora se podia suspeitar que as hostes
brotariam como que milagrosamente dos seus
campos, e as armadas surgiriam dos seus portos
para devassar e submetter as mais afastadas re-
giões. Não importa que seja escassa a terra, que
na Europa lhe coube na fortuita partilha das na-
ções. Basta um gérmen invisivel para copar-se
um dia em arvore gigante. De um burgo ignoto
da Macedónia saiu aquella torrente caudalosa,
que alastrou o antigo mundo com o seu fecun-
dissimo nateiro. É o espirito, não o corpo dos
homens e das nações que as rebaixa á craveira
dos Thersites, ou as levanta á eminência dos hc-
roes.
Era em Portugal escassa a força, o animo in-
vencivel. Uma idéa nova e generosa, uma per-
severança inquebrantável, e uma esperança, que
nos próprios contratempos se fortalece e avigo-
ra, eis ahi o que é bastante para obrar prodi-
gios assombrosos na historia da humanidade.
Eis ahi em que reside a thaumaturgia dos que
transformam e melhoram a humana condição e
VASCO DA GAMA
3i
inscrevem na sua historia as epochas mais fe-
cundas e brilhantes.
Reduzida Ceuta ao dominio portuguez, está ali
erigido o padrão, que demarca o primeiro está-
dio na sequencia de ousados descobrimentos e
conquistas desde o Tejo até ás mais remotas
plagas do Oriente e ás mais distantes ilhas da
Oceania.
Parar em Ceuta era pouco, era talvez ingló-
rio. Estender pelo império de Marrocos as con-
quistas portuguezas era talvez demasiado para
as forças da nação. Em vez de internar-se pelo
sertão da Africa septentrional, seria mais factível
c fructuoso circumnavegar-lhe o litoral, em de-
manda de novas regiões.
»
CAPITULO IV
o QUE DETERMINOU PORTUGAL AOS GRANDES
DESCOBRIMENTOS
Consirou . . . que se podenam tra-
zer pêra estes reynos muytas merca-
dorias que se avcryam de hõo mercado
Azurara, Chron. do descob. de Gui-
ne, cap. VII,
Eram muitas e diversas as causas, que inci-
tavam Portugal a aventurar-se ás emprezas
africanas e ás perigosas navegações no Oceano
para a parte do occidente e meio-dia.
Por umas prendiam-se intimamente os olhos
ao passado, emquanto pelas outras as vistas se
dilatavam por infindos horizontes até remotas
epochas vindouras.
Os princípios do século xv eram a transição
entre a edade média, que ia fenecendo e a nova
civilisação, que se estava annunciando e irrom-
pendo irresistível. As tintas, que davam aos
tempos medievos o sombrio colorido, pouco a
34 VARÕES ILLUSTRES
pouco SC iam esbatendo c smor:{ando nos ma-
tizes mais claros c brilhantes da nova condição
da chrístandade. Era ainda como que o luzir
mal distincto da alva, que principia, deixando
por emquanto vago e indefinido o perfil das
cumieiras e ainda represas pelos mais profun-
dos valles as sombras da ante-manhá. As ve-
lhas tradições da edade média vinham mesclar-
se em forçosa consonância com as juvenis as-
pirações de uma epocha mais propensa aos
conceitos racionaes.
A noção estreita da pátria no seu puro signi-
ficado de terra exclusiva, intractavel, inimiga
de quanto demorasse para fora dos seus lindes
e fronteiras, luctava, debatia-se,mesclava-se com
a nebulosa concepção de uma civilisação cosmo-
polita e de um só corpo mystico, fraterno, in-
dissolúvel de toda a humanidade. As institui-
ções e os costumes, que nos séculos medievos
tinham imprimido á christandade as feições
proeminentes, não estavam ainda de todo o
ponto obliterados. A antiga cavallaria com o
seu espirito religioso e romanesco, o seu fa-
natismo de honra e de primor, a sua abne-
gação e heroicidade, o seu rito e ceremo-
nial, em que as armas como que recebiam o
VASCO DA GAMA 35
baptismo e a uncção e ficavam consagradas ás
emprezas, onde a honra e a f é reclamassem
auxilio e defensão, ainda tinha proselytos fer-
ventes e devotados campeadores. Os poemas
cavalleirosos, com a sua forma culta, com o
.seu metro aprimorado, succedendo ás novellas
andantescas e ás canç5es de gesta, attestavam
que o gosto universal, inclinado a estas litte-
rarias creações, não se despedira inteiramente
das predilecções cavalheirescas e da paixão das
aventuras. Por outra parte prevalecia nos espí-
ritos portuguezes o ódio implacável contra os
árabes e o ardente desejo de retribuir com as
incursões na terra própria as longas e dolorosas
tribulações, com que tinham durante séculos
avexado e opprimido o solo das Hespanhas.
Portugal como que se havia por nascido e crea-
do expressamente para continuar sem pausa a
guerra sancta. Era encargo, que lhe vinha trans-
mittido por herança, e de q^ie não podia des-
cuidar-se sem que viesse a cair quasi em com-
misso o seu glorioso património.
O grave e diserto João de Barros, — que foi
sem duvida para a moderna historia o que
Heródoto representou entre os antigos, o fun-
dador de uma nova escola já distinctp. profun^
36 VARÕES ILLUSTRES
damente da chronica e da lenda mythologica, —
ao fallar da missão, que parece a Providencia
incumbira a Portugal, depois de compendiar
em breves termos como se fora constituindo e
roborando esta nova nação do ultimo Occidente
desde Aífonso Henriques até á completa expul-
são dos musulmanos, prorompe n^estas pala-
vras, que cifram ao mesmo passo um arranque
de orgulho portuguez e uma affirmação ainda
inconsciente de philosophia histórica.
«O qual dote e herança (a de oppugnar os
muslimes sem tregoa, nem repouso) parece que
foi dado com tal benção per este catholico rei
D. Aífonso, que todolos seus descendentes, que
a herdassem sempre tevessem continua guerra
com esta pérfida gente dos arabeos. Porque co-
meçando deste tempo té o presente, que he dis-
curso de quatrocentos e tantos annos de idade
deste reyno dé Portugal, depois que apartado
da coroa de Espanha teve este nome, assi per-
maneceu em continua guerra destes infiéis, que
com verdade se pôde dizer por elle, ter vestido
mais armas que pelotes . . . E passados os pri-
meiros annos da infância d^elle, que foi todo
o tempo que esteve no berço, em que nasceu,
limitado na costa do mar Oceano (porque o
VASCO DA GAMA 3 7
mais do sertão da terra, ficou na coroa de
Castella e a elle lhe não coube mais em sorte
nY^sta nossa Europa) todo o trabalho d''aquelles
principes que então o governavam, foi alimpar
a casa d^sta infiel gente dos arábios, que Ih^a
tinham occupado do tempo da perdição de
Espanha, té totalmente a poder de ferro os
lançarem alem mar, com que se intitularam reis
de Portugal e do Algarve'.»
D''ahi nasceu a expedição de Ceuta e a to-
mada breve, mas sangrenta d^ste famoso ba-
luarte musulmano, chave preciosa da Africa
septentrional e felicissimo começo de uma serie
quasi ininterrupta de conquistas e victorias.
A esta aversão hereditária e indefessa contra
os antigos invasores mahometanos, accresciaum
outro sentimento não menos poderoso, que
da edade Inédia passara ainda vivaz e persis-
tente para os ânimos n'uma epocha de mais racio-
nal entendimento. Era a mesma inspiração, que
dictára em seu principio as famosas e heróicas
migrações, que se appellidaram as cruzadas. Era
este refluxo da Europa contra o Oriente, respon-
dendo ao fluxo, com que em remotas eras o
JhWíd. I. l!\. 1, C.\\^. i, .'d. M.-x Inl. 2-.'.
38 VARÕES ILLUSTRES
Oriente, com as innumeraveis multidões de Xer-
xes e Dário, arremettêra contra a Europa, que-
brando o Ímpeto em Platéa e Marathona. Era
este pendor irresistível, com que toda a civilisa-
çáo se crê predestinada a absorver e diluir na sua
substancia as alheias civilisações. Era o instincto
da unidade espiritual, o mesmo que na antigui-
dade levara os deuses da Assyria e Babylonia
aos povos asiáticos e buscara confundir as con-
quistas politicas e sociaes com a reducção dos
povos subjugados a uma única lei religiosa ^
Era, guardadas as proporções, a mesma fervorosa
intolerância, com que os gregos e romanos se
empenharam em hellenisar e romanisar os âm-
bitos da terra.
Nenhuma civilisaçao pode haver tão material
e positiva^ que não esteja como que compen-
diada em breve cifra n^uma noção espiritual, e
quasi sem excepção, religiosa. Ora a civilisaçao
t «Whcrever he goes (the Assyrian King), he takes care
to «Set up the emblems of Asshur» or of «the great
gods» and forces the vanquished to do them homage. . .
and (tne people) aim at extending their belief as much
as their dominion.» Rawlinson, TheFive great monwxhies,
London, iSyS, i, pag. 240-241.
VASCO DA GAMA 39
dominante no O ocidente íirmava-se e resiimia-se
n''um principio capital, a fé christa. O christia-
nismo era a sua face mais brilhante, o seu ca-
racter histórico e fundamental. Dilatar as frontei-
ras da christandade, levar o dogma e o symbolo
christão a dominar entre as gentilidades mais
remotas, arrebanhar até o evangélico redil as
gentes e as naç5es agora envoltas nas trevas do
paganism.o ou corrompidas na abominável seita
de Mafoma, era, no conceito d^aquelles tempos,
fazer que irradiasse a superior civilisação da Eu-
ropa para abarcar todos os povos conhecidos ou
ignotos. Enumerando o chronista Gomes Eannes
de Azurara as rasões, que haviam determinado
o infante D. Henrique a emprehender os seus
famosos descobrimentos, assenta em ultimo lo-
gar, havendo-a comtudo como primeira, a de
augmentar e extender a christandade. «A quinta
rasão foi o grande desejo, que havia de accres-
centar em a santa fé de nosso Senhor Jesu Ghristo
e trazer a ella todalas almas, que se quizessem
salvar, conhecendo que todo o mysterio da en-
carnação, morte e paixão de nosso Senhor Jesu
Ghristo foi obrado a esta fim, scilicet, per sal-
vação das almas perdidas, as quaes o dito Se-
nhor (o infante) queria, per seus trabalhos e des-
40 VARÕES ILLUSTRES
pezas trazer ao verdadeiro caminho, conhecendo
que se não podia ao Senhor fazer maior offerta,
ca se Deus prometteu cem bens por um, justo
está que creamos que por tantos bens, scilicet,
por tantas ahnas, quantas por azo dVste Senhor
(o infantej são salvas, elle tenha no regno de
Deus tantos centenários de galardões, per que
a sua alma depois d''esta vida possa ser glorifi-
cada no celestial regno ^)). E tanto sobrelevava
esta rasão ás demais expendidas pelo ingénuo
chronista das nossas primeiras navegações e
descobrimentos africanos, que por tão benemé-
rito serviço, qual foi o de attrahir ao jugo da
egreja os infiéis, exora e depreca o Omnipoten-
te para que ao fervoroso fautor de tal empre-
za, accrescentena eterna bemaventurança o pre-
mio e a gloria.
Não ha porém nenhuma civilisação, por mais
espiritual e acrisolada, que appareça despida e
exempta de toda a macula terrena e mundanal.
O espirito pôde tender para o céu e para as altu-
ras, onde tudo é anhelar pela m^^stica immorta-
lidade. Mas a carne pende para a terra e para
I Azurara, Chronica do descobrimento e conquista de
Guiné, cap. vii, pag. 47.
VASCO DA GAMA 41
esta humana eternidade, que se chama a gloria
c o renome, transmittido até ás mais remotas
gerações.
Compendiando João de Barros os motivos
que imperaram no animo aventuroso do infante
D. Henrique para se determinar ás maritimas
emprezas, lá está apontando aquella natural in-
clinação, que levava o ascético mestre de Ghris-
to a enlaçar com o augmento e esplendor da fé
christã, o lustre e a gloria do próprio nome: «E
também (diz o grave historiador) porque acerca
dos homens lhe ficasse nome de primeiro con-
quistador e descobridor da gente idolatra, em-
preza que té o seu tempo nenhum principe ten-
tou')).
Entre os incentivos, que espertaram os brios
portuguezes para tentar os incógnitos caminhos
do Oceano, houve, como para os argonautas
mythicos da Grécia, um cubicado vellocino. As
riquezas e thesouros, que as terras apartadas e
as mysteriosas regiões em si contêm, magnifi-
cadas pela phantasia e como que poetisadas pela
cubica, traziam invejosas c inquietas as chris-
tandades -do Occidcntc. A terra, ainda nas re-
Harros, Decad. \, liv. 1, cap. 11.
42 VARÕES ILLUSTRES
giões mais florentes e mimosas, na França, na
Itália, nas Hespanhas, era escassa ou erma de
productos naturaes, doestes, que no vulgar juí-
zo, se. têm por synonymos de riqueza. O oiro e
as pedras preciosas, as especiarias, as drogas,
os perfumes, os estofos, os tapizes, os sândalos e
calambucos do Oriente, avantajavam-se em valia
ao que podiam brotar de si as glebas europêas,
e ao que sabiam aíFeiçoar nos mais primorosos
artefactos os mesteres do Occidente. Os provei-
tos mercantis entravam pois por grande parte
nos desejos fervorosos, com que as nações da
Europa buscavam alargar as suas navegações e
os seus tratos com as gentes mais longinquas*
Azurara o põe de manifesto, quando ao capi-
tular a segunda rasão, que estimulou ó infante
D. Henrique, escreve estas palavras: «E a se-
gunda foi porque consirou que achando-se em
aquellas terras alguma povoraçáo de christãos,
ou alguns taes portos, em que sem perigo po-
dessem navegar, que se ppderiam pêra estes re-
gnos trazer muitas mercadorias, que se have-
riam de bom mercado, segundo rasão, pois com
elles não tratavam outras pessoas de outras par-
tes, nem de outras nenhumas, que sabidas fos-
sem c que esso mesmo levariam para lá das que
VASCO DA GAMA 4^
em estes regnos houvesse cujo trafego trazeria
grande proveito aos naturaes^».
De quantas paragens remotissimas podiam,
pelas suas fabuladas ou eífectivas opulências,
aguçar a curiosidade nos europeus, nenhuma
sobreexcedia áquellas regiões, que situadas nos
extremos confins do Oriente, eram nebulosamen-
te conhecidas pelo que deixaram d'ellas mencio-
nado em suas obras os escriptores da antigui-
dade. A índia, aonde chegara triumphante o
celebrado macedónio, aquelle Cathay mysterio-
so, cujas maravilhas noticiara Marco Polo aos
seus contemporâneos, eram para os europeus
ambiciosos e insoffridos da penúria relativa das
terras occidentaes, o alvo dos seus desejos mais
ardentes.
Duvidam alguns historiadores sobre se o in-
fante D. Henrique ao cogitar e pôr em obra a
traça grandiosa de suas atlânticas navegações,
tivera em mente o descobrir o caminho mariti-
mo da india^. Se nos pautados, quasi timidos
1 Azurara, Cliron. do descobr, e conq. de Guinés cap. \ii,
pag. 4(3.
2 Pcschel, Geschichte des Zeitaliers der Eutdechm^
gcn (Ilist. da epocha dos descobrimentos), Stuttgart c
Augsburgo, i858, pag. j3.
44 A'AROHS ILLUSTRIiS
começos de suas navegações, não era este o fim
immediato, a que tendia o seu empenho gene-
roso, náo se pode contestar que este foi em seu
espirito o alvo, a que se haveriam de encami-
nhar as suas emprezas, se a edade e a fortuna
lh'o tiveram consentido. Das palavras de Azu-
rara se deprehende que o infante anhelava por
saber noticias e informações acerca da índia e
d'aquelle soberano mysterioso, que trazia occu-
pada perennemente a phantasia dos geographos
eiurante a edade média, o rei-sacerdote, o fa-
moso Preste João^
As causas, que trazemos apontadas e que in-
fluiram nos ânimos briosos e varonis de Portu-
gal para que emprehendes^e e acabasse tal em-
preza, qual era descobrir e aproveitar para a
geral civilisação os immensos territórios c os
mares até ahi impenetráveis ao commercio c
trato humano, accresceu ainda mais um novo
estimulo, não menos ponderoso e espertador
de heróicos feitos e perigosas aventuras. Era
I «O infante... disse... que non soomente daquella
terra desejava daver sabedorya, mas ainda das Indyas e
da terra de preste Joham, se seer podesse.» Azurara,
C/iroii. do descobr. c conq. de Guiné, cap. xvi, pag. 94.
VASCO DA GAMA 46
a curiosidade e o anceio de saber. Esta é a in-
genita feição da humanidade, que se não pague
do que é, senão que procure avantajar-se ainda
mesmo a lance e contingência de perder-se; que
se não contente do que sabe, se não que busque
dilatar o estreito cerco da herdada sciencia e
tradição. E comtudo incontestável que não foi
o ardente desejo de accrescentar o pecúlio do
saber acerca da natureza, a rasão predominante
nos descobrimentos e aventuras oceânicas. Os
portuguezes, á similhança dos romanos, eram
principalmente um povo pratico e batalhador.
O fervor especulativo destoava da sua Índole
guerreira e positiva. Conquistar e submetter ao
seu dominio o orbe inteiro era a sua insaciável
ambição ^
I Ritter, Gesch. der Erdk. iind der Entdeck. (Hist. da
geographia e dos descobrimentos), Berlim, 1880, pag. 94.
CAPITULO V
A CIVILISACÃO PORTUGUEZA NO SÉCULO XV
>
... o reino prospero ílorece
(Alcançada já a paz áurea divina)
Em constituições, leis, e costumes,
Na terra já tranquilla claros lumes.
Camões, Ltisiad., in, 96.
Estava Portugal n'aquelle século, senão tão
florente em letras como a Itália e como a
França, não de certo inferior em valia intelle-
ctual aos demais povos christãos do Meio-dia e
do Occidente. Muitos homens eminentes por sua
erudição e anhelo de saber attestavam que o
engenho portuguez requer apenas luz e liberdade
para que possa desentranhar-se em fructos sa-
sonados. Desde os tempos de D. Affbnso III e
D. Diniz a cultura nativa, ainda então escassa
e rude, como de quem mais sabia vestir as guer-
reiras louçainhas de soldado, que a severa gar-
nacha de doutor, fora largamente fecundada pelo
48 VARÕES ILLUSTRES
influxo de extrangeira illustração. A poesia arti-
ficiosa e cortezá tomara domicilio nos paços dos
monarchas e nos alcaçares dos potentados. Os
cancioneiros, numerados entre os mais antigos
e preciosos monumentos litterarios da peninsu-
la, ahi ficaram para demonstrar como a poesia
achava em Portugal, n^aquelle tempo, náo so-
mente quem a podesse aquilatar com justo
apreço, senáo quem a soubesse compor e exor-
nar. A novella de cavallaria tinha no engenho-
so cavalleiro portuguez, Vasco de Lobeira, o
auctor, segundo a opinião de muitos doutos, ou
pelo menos o novo redactor do celeberrimo
Amadis, a quem Cervantes, no famoso escru-
tínio da livraria de D. Quixote, exalta ate ás
nuvens, como tendo o principado em toda a
andantesca litteratura ^ As sciencias, que durante
os reinados mais antigos náo achavam onde lu-
zir e professar-se, tiveram no estudo geral, insti-
tuído em Lisboa pelo rei menestrel e cultivador,
asylo decoroso, onde abrigar-se. O direito roma-
no, que em lace dos bárbaros costumes e das insti-
I «No, scnor, dijo cl barbcro, que tambicn hc ordo de-
cir, que es cl mejor de todos los libros, que de este f;c-
nero se han compuesto.') Cervantes, El Qiiijote, cap. vi.
VASCO DA GAMA 49
tuições locaes, se por um lado debilitava a
liberdade e independência municipal, represen-
tava por outro lado um progresso valioso
na unidade portugueza e na condição intelle-
ctual da monarchia, lograra introduzir-se em
Portugal. As leis romanas, com a sua contex-
tura systematica e o seu corpo doutrinal, co-
meçavam a vencer a anarchia do direito con-
suetudinário e a omnipotência das leis munici-
paes. Era frequente o concurso de portuguezes
escolares, que a Paris e a Bolonha, centros
principaes da sciencia medieva, iam retemperar
o entendimento e vincular a intelligencia nacio-
nal á commum civilisaçáo da christandade. O
famoso doutor João das Regras, que em no-
me da soberania eleitoral, nas cortes de Coim-
bra, ajudou com a eloquência c a erudição o
montante do condestavel, para que superasse as
resistências oppostas á eleição do mestre de
Aviz pelos escrúpulos dynasticos c pela su-
perstição da legitimidade, era um exemplo vivo
de que no meio da peleja não dormitava o en-
genho portuguez. O infante D. Pedro deixou
assignalada cm monumentos litterarios a pre-
dilecção, que lhe merecera o saber, a poesia,
a erudição. El-rei D. Duarte legava á posteri-
5 o VARÕES ILLUSTRES
dade, no seu livro do Leal conselheiro, um
irrecusável testemunho de que excedera pelos
voos da intelligencia o nivel dos seus coroados
contemporâneos. Fernão Lopes, nas chronicas
de D. João I e do infante D. Pedro, despojava
a linguagem portugueza da mais rude cortiça
semi-barbara e não se envergonhava de que
os seus livros competissem com as narrativas
de Froissard, o eminente e coevo historiador.
Gomes Eannes de Azurara, na sua Chronica
do descobrimento e conquista de Guiné, alem da
sua curiosidade inquiridora e da sua histórica
veracidade, pompeava a sua grande erudição
nas letras sagradas e profanas e a sua larga
e frequente conversação com os mais illustres
escriptores da antiguidade.
De quanto floresciam as artes em Portugal em
princípios do século xv, dá irrecusável testemu-
nho a grandiosa fundação do mosteiro da Bata-
lha, cuja phantasiosa architectura podia empa-
relhar com as mais soberbas cathedraes con-
temporâneas.
Em tempos de D. Affonso V se compilaram
e reduziram a corpo harmónico de leis as anti-
gas ordenações. Em seus paços se fundou a pri-
meira livraria n^aquelles tempos, em que os
VASCO DA GAMA bl
códices eram tão custosos e tão raros que os
volumes se prendiam por cadeias, para que
se não podessem distrahir do seu logar e figura-
vam como legados preciosos entre as copas, as
baixellas.; os brocados, as jóias e as alfaias dos
príncipes e dos prelados.
O estado mental do povo portuguez nas clas-
ses, a que em tempos de ciosos privilégios se po-
dia diíTundir a illustraçao, era pois accommoda-
do a que não somente se conhecesse o que nos
haviam transmittido os escriptores da clássica
antiguidade, senão que andassem divulgadas as
obras de mais tomo e valia intellectual, que na
Europa letrada se escreviam.
Havia pois em Portugal n'aquelle século no-
ticia do que acerca da cosmographia e das mys-
teriosas regiões da Africa e da Ásia nos deixa-
ram entrever antigos escriptores. £m seus livros
se podia rastrear alguma luz, se bem que débil e
indecisa, por entre a sombra e escuridão de erros
capitães dogmaticamente professados, e de pal-
mares ignorâncias coloreadas por fabulas pueris
e desvairadas phantasias. As viagens e peregri-
nações de aventureiros temerários atravez das
terras asiáticas até ás nebulosas regiões do Ca-
Xh0.y Q de CipangO, andp^'nm ií ^-^r^tr^vl^^^ n]^1rr OÍ$
52 VARÕES ILLUSTRES
mais curiosos portuguezes. O próprio infante
D. Pedro, porventura estimulado por este nobre
anceio de alargar os âmbitos da pátria, condão
peculiar da sua familia, tinha cursado terras
peregrinas e as sete partidas, que pelo mundo
havia discorrido, andavam como em proloquio
na bocca popular. Fora elle segundo o teste-
munho de Valentim Fernandes ou de Moravia
quem á volta de suas largas excursões trou-
xera de Veneza a Portugal a primeira copia do
livro de Marco Polo.
Por assombrosos que fossem reputadas no
seu tempo em toda a Europa, por incriveis,
á conta de sobrehumanas, que nos pareçam
depois de tantos séculos as navegações e des-
cobrimentos portuguezes, é bem que nos não
deixemos enganar por tão supérfluo amor da
pátria, que julguemos os nossos primeiros ma-
reantes desamparados de toda a luz e tradição
como quem se aventurou a mares desconheci-
dos e tenebrosos, em demanda do que nem por
vagos indícios suspeitava. Não, os portuguezes
do século XV não iam embarcar-se em frágeis
caravellas e'mal seguros barineis, sem levarem
uma rota já marcada, ainda que imperfeita e ás
vezes conjectural. As suas navegações não são
VASCO DA GAMA 53
apenas romanescas excursões de cavalleiros an-
dantes do Oceano, que váo sulcando as aguas
tormentosas, sem norte e sem destino, em
busca de fortuitas e inopinadas aventuras. É
na traça discreta, calculada, systematica, por
que se vão guiando em suas perigosas singra-
duras, é na racional e methodica sequencia e
tenacidade em suas emprezas, que a immensa
circumnavegaçáo dos portuguezes desde o cabo
Náo até o Malabar se distingue profundamente
das pequenas e accidentaes navegações, que
outros povos europeus, asiáticos, ou africanos
poderam porventura antes de nós emprehen-
der^
Com verdade escreveu o nosso grandíssimo
geometra Pedro Nunes, «que estes descobrimen-
I «Man wurde weit fehl gehen, wenn man glauben wol-
tc, er (der Infant Heinreich) habe seine Scefahrer auf das
Ungefahr hinausgeschickt.» — «Caír-se-ía em grande erro
SC se quizesse acreditar que elle (o infante Henrique) ha-
via expedido ao acaso os seus navegadores.» Peschel,
Gesch. des Zeitalt. der Pjitdeck. Stuttgurt e Augsburg,
i858, pag. 71. Sobre o conhecimento, que D. Henrique
sempre buscara alcançar do interior da Africa, veja-se a
mesma obra de Peschel, pag. 72.
04 VARÕES ILLUSTRES
tos de costas, ilhas e terras firmes não se fize-
ram indo a acertar, mas partiam os nossos na-
vegadores mui ensinados e providos de instru-
mentos e regras de astrologia e geometria, que
sáo as cousas de que os cosmographos háo de
andar apercebidos^».
E o nosso périplo glorioso, é aquelia cadeia
ininterrupta de marítimas proezas, com que an-
dámos rodeando todo o africano litoral, como
que um longo e concatenado raciocínio, meio
experimental e meio theorico, onde cada singra-
dura é a premissa da seguinte, cada signal ou
padrão, que fomos plantando aqui e acolá, o
marco d^onde contámos novo tracto de terra
marginal desconhecida. E áõ revez da nossa
previsão e perseverança, as antigas navegações
em torno de Africa, se acaso as podemos de-
fender de espúrias ou fabulosas, e as suppostas
expedições de normandos, catalães, venezianos,
genovezes, são n'este magnifico certamen como
que desconnexos improvisos, sem êxito e sem
fructo conhecido para a civilisação universal. A
nossa empreza é como um poema épico, de que
1 Pedro Nunes, Defensão da carta de marear.
VASCO DA GAMA 55
resoam ainda os cantos na tuba do Camões, a
d^elles uma trova ligeira e fugitiva, sem echo
e sem applauso na remota posteridade.
Aqui podéramos nós a respeito dos antigos
navegadores portuguezes dizer com o poeta das
nossas marítimas victorias :
Ouvi, que não vereis com vás façanhas,
Phantasticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras vossas são tamanhas.
Que excedem as passadas fabulosas K
Tamanhas e agora quasi táo perdidas para
nós, táo fructuosas para extranhos!
1 Camões, Liis.y cant. J, est. xi.
CAPITULO VI
AS NAVEGAÇÕES NA COSTA DE AFRICA
DURANTE A ANTIGUIDADE
... Queila foce stretta
Ov' Ercole segnò li suoi riguardi
Acciocliè l'uom piú oltre non si metta.
Dante, Infern., xxvi, 107-109.
Andam accesos os philologos e os commen-
tadores da antiga geographia n'uma lide bem
travada, em que uns, portuguezes e extrangei-
ros, reivendicam para a nossa pátria a origi-
nalidade absoluta da navegação em volta de
Africa e outros quasi todos forasteiros, sem ne-
garem os mais d^elles nossos méritos, assentam
como certo o havermos tido audazes predeces-
sores na antiguidade e edade média. Pleiteou
contra nós entre os extranhos Huet', o copio-
1 Histoire dii commerce et de la navif^ation des anciens,
Lyon, 1764.
58 VARÕES ILLUSTRES
so bispo de Soissons. Náo devemos porém, des-
lembrar que este prelado, obstinado e ardente
defensor da antiguidade, pertenceu a esta es-
cola de geographos, que envidaram os recursos
da sagrada e profana erudição para investigar
a pontual situação do paraiso terreal^ Prece-
deii-o em vindicar a prioridade e o renome dos
antigos na circumnavegação da costa de Africa
o seu compatriota^ Bochart^, que soube congra-
çar os thesouros philologicos, a mãos largas des-
pendidos, com a mais infantil credulidade e com
a mais indisciplinada phantasia. Acudiu ulterior-
mente Francheville já mais aífeito á critica mo-
derna^. Veiu depois Court de Gibelin, que no
livro em seus tempos celebrado, hoje, pQrem
quasi esquecido, I^e monde primitif, terçou con-
tra nós pelos direitos da antiguidade. ÍDecidiu
também em nosso desfavor o hespanhol Luis
de MarmoH.
Montesquieu pela grande íCuctoridade do seu
nome poderia contar-se como um dos maisj^-
1 De la sitiiation dii Pafaç(p íerresire, Amstcrdam.
2 Chanaan^ Frankfort, 1694.
3 Histoire des Jndes. .^ niJ^rí/'^-jf
4 Description générale de Africa,
VASCO DA GAMA 5C)
signes propugnadores das viagens antigas em
torno de Africa, se quando pelo testemunho de
Heródoto, de Plinio e Pomponio Mela, admitte
as circumnavegaç5es dos gregos e phenicios, não
accrescentasse uma grave duvida e uma insolú-
vel contradicção a que fossem havidas por au-
thenticas similhantes explorações ^ Bougainville,
o illustre sábio e erudito navegador, mantém re-
solutamente que fosse verdadeiro o notável pé-
riplo de um nauta carthaginez^.
escriptor inglez Falconer nos fins do século
xvnr, e já na segunda metade do século presente
o notável geographo Vivien de Saint-Martin^
admittiram por innegavel e authentica a mais
celebrada e porventura a só provável de todas
as largas circumnavegações africanas na antigui-
dade, a do carthaginez Hannon, limitada no con-
1 «II fai^t bienque du temps de Ptolemée le géographe
CCS deúx navlgations fusscnt regardées comme fabuleuses,
puisqu'il place depuis le sinus magmis . . . une terre in-
connue de sorte que la mer des Indes n'aurait été qu'un
lac.» Montesquieu, De Vesprit des lois^ liv. xxi, cap. xi.
'2 Alem. de VAcad. des inscrlpt. et belles letlrc' ^. ^i^-inr,
287.
3 Vivien de Saint-Martin, Hist. de la ^cogr.j pag. 36
cseg.
6o VARÕES ILLUSTRES
ceito de Gosselin até alcançar unicamente o cabo
Náo^
E o que é mais para notar, um nosso portu-
guez, tão afamado por seus escriptos e viagens
como foi Damião de Góes, não houve a desaire
e desprimor para seus próprios naturaes o dizer
que outros antes de nós fizeram, seguindo a
mesma rota, a navegação até á índia 2. E verda-
de que o erudito chronista de el-rei D. Manuel
1 Gosselin, Recherches siir la géographie positive et syS'
tématiqiie des anciens.
2 «As quaes viagens todas se fizeram per mandado d'este
invencível rei D. João (o segundo) com muito trabalhe
seu e despeza de sua fazenda, navegação já esquecida de
todo o género humano per tanto espaço de tempo, quanto
se pôde ver em um discurso, que disso fiz na mesma chro-
nica do príncipe D. João, que compuz de novo em lingua-
gem portuguesa, e assi em um livro que fiz em língua la-
tina do sitio e antiguidade da cidade de Lisboa, nos quaes
dois discursos declarei quantas e quaes pessoas muito
antes fizeram esta viagem da índia pelo mesmo caminho,
que ha nós agora fazemos, ho que fiz por acodir ao erro,
em que caíram alguns scriptoresporlíuguezes, que trataram
destes negócios, dizendo q so a nação portugueza fora
q navegando pelo Oceano primeiro que ncnhua outra
viera ter ao mar da índia, do qual erro se lhes pode em
VASCO DA GAMA
I
com a franqueza e liberdade de quem era ao
mesmo passo portuguez e cosmopolita e talvez
um tanto inclinado ás doutrinas protestantes e
á independência de opinião, contrapesa a affir-
mação^ que poderia acaso redundar em deslustre
de Portugal, com chamar ás circumnavegações
da antiguidade navegação já esquecida de todo
o género humano. E é por serem quasi oblitte-
radas na memoria e sem nenhum proveito da
sciencia ou civilisação, que os périplos de
gregos, de romanos, de carthaginezes, de phe-
nicios e de gentes de Hespanha em epochas re-
motas e difficeis de assignar, são como se nunca
houveram existido, quando os paragonamos e po-
mos em parallelo com as maravilhosas nave-
gações dos portuguezes em demanda das regiões
orientaes. Como seja a navegação, mais ou menos
imperfeita, anterior de largos séculos aos nossos
immortaes descobrimentos, é força o presuppor
que de tantos povos já entrados em rasoado
parte relevar ha culpa por porventura cuidarem q atre-
buindo esta gloria á sua própria naçam lhe acrecentavão
louvor aos muitos q 'se lhes deve pelas milagrosas victo-
rias, q em aquellas partes em diversos têpos e lugares hou-
veram.» Dam. de Góes, Chromca de D. Emanuel^ part. i,
cap. xxíii, Lisboa, 1619, foi. i3.
62 VARÕES ILLUSTRES
progresso de cultura, quantos demoravam na
antiguidade ás orlas do Atlântico, do Mar Me-
diterrâneo, do Golfo Arábico, do seio Pérsico e
do Oceano oriental, alguns iriam costeando
em mais ou menos dilatadas singraduras as
costas de Africa e as terras hindostanicas. Ne-
nhum porém proseguiu ininterrupto as suas
emprezas por discurso de quasi um século, as-
sombroso prodigio e maravilha de que é único
exemplo o pequeno, mas afortunado Portugal.
Outro escriptor portuguez, António Galvão,
não menos celebre pelos seus heróicos feitos
nas Molucas do que pela ingratidão, com que a
monarchia, segundo era seu costume, o premiou,
parece igualmente propender, aindaque sem pe-
remptória affirmaçáo, a que povos antigos nos
hajam precedido em ousadas navegações pelo
Oceano até á índia oriental ^
Das famosas navegações e descobrimentos
I Galvão cita como tradição as sabidas historias de an-
tigas navegações em volta da Africa, sem discutir, nem
apreciar as auctoridades, em que se firmam as noticias, que
vae dando. António Galvão, Tratado dos descobrimentos
antigos e modernos feitos até d era de iSSo e dos des-
vairados caminhos por onde a pimenta e especiaria vciíi
ds nossas partes. Lisboa, lySi, pag. 2-1 5.
VASCO DA GAMA 63
portuguezes no século xv, não ha apenas nebu-
losas reminiscências e vagas tradições. Existem
encorporados na presente civilisaçao os seus as-
sombrosos resultados. Estão perpetuados em
diplomas fidedignos, em livros contemporâneos,
em indubitáveis monumentos, em authenticos
padrões. Apparecem attestados nos documen-
tos cartographicos, nos mappas, nos portula-
nos, nos roteiros, que na Europa se fizeram
desde as primeiras derrotas portuguezas alem
do cabo Bojador até á viagem portentosa do
immortal Vasco da Gama. Estão vinculados na
memoria de todos os povos do universo pelos
nomes portuguezes, que assignalam os cabos,
as angras, as enseadas, os rios, os parceis, ao
longo do immenso litoral no vasto continente
de Africa. A similhança do que succedêra com
a mais extensa exploração do Nilo e das terras
adjacentes até o Mar Vermelho, onde os nomes
gregos dos logares e os templos consagrados
aos deuses hellenicos attestavam serem gregos
os que desde o Egypto, depois das conquistas
de Alexandre, chegaram novamente até o Golfo
Arábico'.
I Strabp, Gçosr., liv. xyi,
64 VARÕES ILLUSTRES
Estão nossos descobrimentos registrados na
historia da geographia pelos factos experimen-
taes, com que os portuguezes corrigiram acerca
da figura e repartição do globo terrestre, da for-
ma e posição dos continentes, da situação dos
archipelagos, os inveterados erros dos antigos.
Estão consubstanciados nos fastos scientificos,
pelas novas e infindas acquisiç5es nos dominios
da etimologia e das outras sciencias naturaes.
Estão finalmente representados no amplíssimo
império portuguez n^um e n'outro litoral da
Africa immensa, nas dilatadas possessões britan-
nicas na índia oriental, no grande e florente im-
pério do Brazil, que na terra americana se fun-
dou, como se fora um rebento separado do tron-
co principal, agora transformado em arvore
gigante.
Estes são os documentos, em que está cifrada
como empreza única, novíssima, singular, extra-
ordinária nos annaes da humanidade a que fez
de Portugal entre os povos christãos o primeiro
no XV século e lhe deu por algum tempo a he-
gemonia moral entre as nações e o dominio e
principado no Oceano.
E emquanto que o saber, o valor, a perse-
verança portugueza brotaram de si taes e tão
\'ASCO DA GAMA
Gb
opimos fructos e as nossas navegações foram,
na sua mais larga accepção e significado, o prin-
cipio da moderna civilisaçáo, os périplos da
antiguidade, se porventura realmente acontece-
ram, não deixaram na terra e na memoria um
traço de luz escassa e indecisa, por onde pos-
samos render graças e homenagens aos mythi-
cos ou duvidosos mareantes. E tão insegura e
tão precária a tradição a este respeito, que os
sábios e philologos discreteam e controvertem
sem poderem alcançar plausíveis conjecturas,
quanto mais a sombra sequer de uma eviden-
cia.
Se preterimos por menos importantes e por-
que em nada aproveitaram á sciencia e communi-
cação dos povos mais distantes, algumas das ex-
plorações marítimas em Africa, citadas pelos es-
criptores gregos e romanos, aponta-se como at-
testando a prioridade dos antigos em cursar o
Oceano ao longo das costas africanas, antes de
todas, a expedição enviada pelo rei egypcio, Ne-
cho, e por elle commettida á proverbial pericia
dos phenicios, que em pontos de affrontar a bra-
veza dos mares e a fúria das tormentas se po-
deriam appellidar os portuguezes da antiguida-
de. Os phenicios foram, com eíVeito, os primei-
66 VARÕES ILLUSTRES
ros navegadores nas epochas antigas. A sua fama
só pôde ser egualada, ou excedida pelos seus con-
tinuadores, os carthaginezes. O Mediterrâneo era
o theatro das suas grandes emprezas marítimas
ecommerciaes. A vida nacional toda se resumia e
cifrava no trato mercantil e na arte de navegar.
As suas colónias demoravam desde Chypre, Cre-
ta, Rhodes até ás costas da Sicilia e á Hespanha
meridional. As suas galés aventuravam-se ao
Oceano e fundavam já fora das columnas de
Hercules a celeberrima Gadeira, ou Gadir, que
foi a Tiro do Occidente, no logar, onde agora
existe Gadix. Eram os navegantes e mercadores
phenicios desde tempos mui remotos, na phrase
do propheta Isaias, «os príncipes e os senho-
res da terra ^)). De todos os povos litoraes do
Mediterrâneo foram elles os primeiros porven-
tura que, saídos d'aquelle estreito encerro, vo-
garam com seus remos nas ondas procellosas do
Atlântico, e annunciaram ás nações orientaes que
nos extremos do Occidente se extendia temeroso
I Isaías, cap. xxiu, vers. 8. — «Tyrum quondam coro-
natam^ cujus ncgotiatorcs príncipes, institorcs cjus inclyti
terrae».
VASCO DA GAMA 67
O grande Oceano. O próprio nome grego Okéa-
nos é, no parecer de alguns philologos, a forma
hellenica do vocábulo phenicio Og ou OgenK
Doesta navegação, commemorada por Heródoto 2,
conhecemos apenas que os phenicios, embarcan-
do no Mar Erythrêo, denominado hoje Mar Ver-
melho, costearam a Africa oriental, pondo a
proa ao sudoeste, e ao cabo de três annos, de-
pois de estancearem por tempo demorado n'al-
guns pontos do litoral, dobraram as columnas de
Hercules, e fazendo-se na volta do Mediterrâ-
neo foram aportar ás praias do Egypto. Esta
primeira e total circumnavegação é or pmuitos
escriptores antigos e modernos averbada de sus-
peita, se não de apocrypha, ou adulterada. Um
escriptor inglez, nosso contemporâneo, grande
honrador de nossas glorias, não hesita porém
em estribar sobre o isolado testemunho do gre-
go historiador, a evidencia de uma empreza, que
devera, se fora verdadeira, ter encontrado um
echo universal entre os antigos^. Mais reserva-
1 Ritter, Gesch. der Erdk. und der Entdeck., pag. 21.
2 Heródoto, liv. iv, Melpomene, n." xlii.
3 Richard Henry Major, The Life o/prince Henry 0/
Portugal siirnamcd thc navigator, Londres, 1868, cap. vii,
68 VARÕES ILLUSTRES
do e meticuloso em pôr inteira fé no isolado
testemunho de Heródoto se manifesta o emi-
nente geographo allemão Oscar Peschel: «Se
por um lado (escreve) sentimos repugnância em
acreditar n^um similhante feito náutico, seria
por outra parte injusto o rejeitar a narração,
somente porque não corresponde ás idéas geral-
mente recebidas acerca da pericia dos antigos
navegadores, os quaes, se nos é dado aventurar
opinião sobre este ponto, não eram em maríti-
ma capacidade inferiores aos mareantes euro-
pag. 89. «The first authenticated navigation of Africa».
É para notar que um táo erudito geographo e historia-
dor, que em vários pontos do seu curioso livro defende
a prioridade absoluta dos descobrimentos portuguezes,
negando a fé aos testemunhos invocados em favor dos
genovezes, normandos, catalães e venezianos, declarasse,
nada menos que authentica,, isto é, íirmada em documen-
tos irrecusáveis, a navegação ordenada pelo egypcio e ac-
ceitasse como dogma indisputável a affirmação de Heró-
doto, sem ao menos lhe contrapor os reparos, que sug-
gere o seu texto n'este ponto, o silencio dos escriptores
romanos, a incredulidade de Strabo, e os erros geogra-
phicos, de que estão cheios os livros da antiguidade, a
qual certamente os devera ter emendado com a luz es-
pargida nas trevas do Oceano pelos navegantes da Phc-
nicia, ás^ ordens do Pharaoh. As duvidas oppostas por
VASCO DA GAMA 69
peus dos séculos xv e xvi^». Admira-se o sábio
germânico de que os geographos da antiguida-
de, depois de tão notável circumnavegação, não
cessassem de consignar em seus escriptos mui-
tas doutrinas, que estavam em directa contradic-
ção com a narrativa consagrada por Heródoto 2.
Uma similhante dubitacão occorreu também a
António Ribeiro dos Santos parecem-nos de todo ponto
procedentes, ao menos para que não juremos cegamente
nas palavras do grande chronista grego, em cuja narra-
ção «ha certamente maravilhas difficeis de acceitar por
verdadeiras. Veja Memorias de litteratura da acad. real
das sciencias, tom. viii, pag. 340-342. A circumstancia, re-
ferida por Heródoto, de que os phenicios n'esta portento-
sa navegação iam pausadamente, quando chegava o ou-
tono, semeando trigo nas margens africanas, aguardando
que as messes lourejassem, fazendo a colheita em tanta
paz e quietude, como se fora em suas nativas granjas e
herdades, e depois embarcando novamente para conti-
nuarem sua viagem, é de tal maneira extraordinária e
inveririmil, que os mais fanáticos idolatras de Heródo-
to, quasi sempre aliás tão verdadeiro, ousariam n'estc
passo fazer uma excepção á sua fé e sorrir talvez da
crendice do escriptor.
Peschel, Gesch. der Erdk. Munich, i865, pag. iS.
2 Peschel, Gesch. der Erdk. pag. 19.
70 VARÕES ILLUSTRES
um moderno historiador da geographia, aliás
faeil em acceitar outras muitas navegações de
menos fundamentada auctoridade^
Da viagem africana de H.annon, o famoso almi-
rante ou capitão carthaginez, legou-nos a antigui-
dade a narrativa, attribuindo-a ao próprio navega-
dor. O Périplo, ou roteiro doesta circumnavega-
eão existia, diz-se, gravado em lingua púnica n^um
templo de Carthago e do texto original foi trasla-
dado por um grego desconhecido, talvez no iv
século antes deChristo. Divulgado n^esta versão,
o relatório naval do celebre carthaginez foi a fon-
te principal, onde gregos e romanos beberam o
que sabiam acerca da Libya, ou Africa banhada
pelas aguas do Oceano. Haviam os carthagine-
zes succedido no fervor das aventuras mariti-
mas e no espirito colonisador e mercantil a seus
predecessores e avoengos, os phenicios, alar-
gando mais do que estes o theatro de suas na-
vegações. Tinham consolidada e florente nas
Hespanhas a sua dominação colonial. E prová-
vel que habituados a cursar as costas da Penín-
sula alongassem para o sul, senão também para
o occidente, as suas derrotas, e ao menos visitas-
} Vivien de Saint-Martín, Hist, de la géogr., pag. 3o.
VASCO DA GAMA 7I
sem as terras africanas, que no Atlântico ficavam
mais convizinhas ao estreito.
Ordenou o senado carthaginez que o almi-
rante Hannon partisse com uma frota de sessenta
galés ou pentecojitores, navios de cincoenta re-
mos, a fundar no litoral da Libya colónias de
Garthago. Iam n^ella trinta mil homens e mulhe-
res, numero que parece desproporcionado ao
conto dos navios de exigua lotação n'aquelles
tempos. Discordam os commentadores sobre
qual fosse o ponto extremo, aonde chegara Han-
non, e ainda admittindo por exactas as identifica-
ções dos nomes gregos, attribuidos no P-eriplo aos
vários pontos da costa occidental, com as deno-
minações impostas aos logares pelos navegantes
portuguezes, e acceitando a amplissima extensão
que Vivien de Saint-Martin assignala aos desco-
brimentos do almirante púnico^ ainda ficaria por
navegar e descobrir quanto decorre desde pouco
alem da serra Leoa, para o sul, até ao golfo
arábico e ao Oceano oriental ^
Não pôde admittir contestação que os cartha-
1 Vivien de Saint-Martin, Hist. de la géogr., pag. 38.
1'eschel, Gesch. der Erdk., pag. 19-21.
VARÕES ILLUSTRES
ginezes fundaram na costa occidental, que em
Africa demora mais conjuncta o estreito de Gi-
braltar, varias colónias, feitorias ou empórios,
de que se perderam os vestígios nos logares,
mas de que se conservam as memorias nos li-
vros dos geographos antigos.
Todos os povos, que estancêam n'uma orla
escassa de terra litoral, como que apertados
em seu berço, buscam indemnisar-se da estrei-
teza na immensa amplidão das aguas, e por
uma lei fatal e necessária se tornam em aven-
tureiros destemidos e em ousados navegadores.
Assim foram na antiguidade os phenicios de
Tyro e de Sidon, e os carthaginezes, seus her-
deiros. Assim na edade média os venezianos,
genovezes e-pisanos. Assim nos modernos tem-
pos os portuguezes, e depois d^elles os maríti-
mos da Hollanda.
Os povos essencialmente navegadores da an-
tiguidade eram os que habitavam á beira do
Mediterrâneo, na Europa, na Ásia, ou na Africa
septentrional. Entre elles foram preeminentes os
tyrios e sidonios, e os carthaginezes, que, saídos
da mesma estirpe, tiveram nas eras mais re-
motas o sceptro e dominação dos mares até
que das mãos lh'o arrebataram os romanos trium-
VASCO DA GAMA 73
phadores. Strabo commemora que no golfo ou
enseada conhecida no seu tempo pelo nome de
seio ou golfo emporico, tinham os mercadores
phenicios, ou antes carthaginezes, diversorios
c estações, onde fazer seu trato com os indí-
genas'. Cumpre náo exaggerar, como alguns
modernos, principalmente o notável Gampoma-
nes^, o numero das colónias carthaginezas. Stra-
bo enumera entre as ficções, que nas angras
e bahias immediatas ao golfo emporico tivesse
havido, segundo a tradição, colónias de tyrios,
elevando-se a trezentas o numero das cidades.
Apesar de que a imaginação dos antigos povoara
de innumeraveis obstáculos a navegação do Mar
Atlântico, todavia (são estas as palavras do geo-
' Strabo, Geogr., liv. xvir, cap. iii, n." 2.
2 Campomanes, Périplo de Hannon ilustrado, pag. 42-
.p. O eminente philologo c estadista hespanhol do tempo
de Carlos III, não entendendo ou antes adulterando o senti-
do litteral e obvio do texto de Strabo, attribue-lhe como af-
lirmação o que elle declara expressamente numerar entre
as ficções. O escriptor hespanhol escreve no texto do geo-
íj;rapho em vez de 27^; íè touto), que apparece nas mais
correctas recensões, s^pí <ít touto, que altera em certa ma-
neira a intenção do escriptor grego. Strabo diz que, não
podendo eximir-se a mencionar algumas fabulas das que
74 VARÕES II.LUSTRES
grapho) a audácia dos homens, assim como se
atreve a outras cousas, náo se teme de tentar os
périplos ou navegações, com que vão costeando
os continentes ^ De aventurar-se porém a peque-
nas excursões ao seio emporico, ou aos logares
onde se dizem erigidas as trezentas cidades car-
thaginezas, até abalançar-se a circumnavegar o
continente africano, chegando ao Mar Erythrêo
ou ao Golfo Arábico, vae a mesma distancia,
que separa das tentativas dos portuguezes, nos
primeiros annos do século xv, a completa e feliz
navegação de Vasco da Gajyia.
Outra circumnavegação, que se diz antiga-
mente emprehendida, é a de Eudoxo de Cyzica,
no tempo em que no Egypto dominava Ptole-
andavam acreditadas acerca da Libya, pede vénia para
as commemorar. A primeira, que menciona, é a da famosa
caverna ou antro de Hercules, no seio ou golfo empo-
rico, na qual estava uma ara votada ao heroe thebano.
Accrescenta depois: «Similhante, ou aíim, ou próxima a
esta primeira tradição (e^^uç to-jtw) é a outra, em que se
diz que nas seguintes enseadas houve antigas habitações
de tyrios, as quaes agora estão desertas, tendo sido as
cidades não menos que trezentas-). Strabo, Geogv., liv. xvji,
cap. III, n.° 3.
í Strabo, Gcogr., liv. xvii, cap. iii, n." 20.
VASCO DA GAMA jS
meu VIII, cognominado Lathuro, ou Lathyro,
cerca de um século antes de Christo. O geographo
romano Pomponio Mela foi o primeiro que a
citou e descreveu no seu livro De situ orbis, re-
portando-se a uma obra hoje perdida do histo-
riador Cornelio Nepos^ Plinio, o naturalista^,
a traz egualmente commemorada, fundando-
se na asserção do biographo romano. Se acaso
é verdadeiro o Périplo do antigo explorador,
1 Pomponio Mela escreve: «Eudoxus quidam, avorum
nostrorum temporibus, cúm Lathurum regem Alexan-
driae profugeret, arábico sinu egressus, per hoc pelagus
(ut Nepos affirmat) Gades usque pervectus est; ideo ejus
orae notae sunt aliqua». Pomponio Mela, De situ orbis,
lib. iir, cap. ix, Lugduni Batavorum (Leyden), 1748, pag.
3io e seguintes. O texto diz trasladado a portuguez: «Um
certo Eudoxo em tempos de nossos avós, fugindo de Ale-
xandria ao rei Lathuro, e saindo pelo seio Arábico, ou
Mar Vermelho, por este mar (segundo affirma Nepos) foi
ter a Gades (a moderna Cadix) e por isto alguma cousa
íicou sendo conhecida do seu litoral».
2 Plinio, Hist. nat., liv. u, cap. Lxvri, Lyon, 1606, pag.
27: «Nepos Cornelius auctor est, Eudoxum quendam
sua aetate, cúm Lathyrum regem fugeret. Arábico sinu
egressum, Gades usque pervectum». «Cornelio Nepos
refere que no seu tempo um certo Eudoxo, fugindo ao
rei Lathyro, saíra pelo sçio Arábico e chegara até Gad^js»,
76 VARÕES ILLUSTRES
havemos de acreditar que partindo do seio Ará-
bico ou Mar Vermelho fora discorrendo em
sua viagem pela margem oriental da Africa,
dobrara o cabo da Boa Esperança, e, aproando
para o norte, proseguíra a navegação ao longo
da costa occidental até ^finalmente vir a Gadix.
Da segunda versão, com que apparece na an-
tiguidade o Périplo de Eudoxo, se nos depara na
obra geographica de Strabo particularisada nar-
rativa. Esta nova recensão das aventuras náu-
ticas de Eudoxo é não somente diversa e em
grandissima parte inconciliável com a primeira,
conservada no livro de Pomponio Mela, senão
que tem contra si a critica de Strabo, que,
depois de largamente a discutir, desapiedada-
mente a averba de falsaria e de forjada, di-
zendo textualmente que não distava muito das
mentiras e das fabulas de Pytheas, de Euhemero
e de Antiphanes^
A discordância manifesta entre as duas narra-
tivas, a ausência de informações acerca das ter-
í Sirabo, Geogr., liv. 11, cap. iii, n." 5.
No mesmo capitulo, n.° 8, chama á historia referida
por Posidonio -òv Eò^dSstov |xííôgv. o mytho ou a fabula eu-
doxeia.
VASCO DA (;ama 77
ras descobertas e dos aspectos diversíssimos do
céu e outras circumstancias, que não podiam
ser nunca deslembradas por quem visse regiões
tão inopinadas e extranhas, oppoem ao Périplo
de Eudoxo taes e tão insolúveis contradicçóes,
que ainda os mais zelosos partidários das nave-
gações da antiguidade ao longo das ribas afri-
canas, a suspeitam por apocrypha, ou tecida
porventura de retalhos mal cerzidos de outras
explorações ^
Accrescem ainda a estas inverisimilhanças as
fabulas pueris, que acerca dos habitantes africa-
nos vem narradas no Pei^iplo, taes como as de
homens sem bocca, sem lingua, e a dos himantó-
podes, ou dos que andavam, não erectos, como
é próprio á familia humana, senão reptando, ou
arrastando-se no chão. Se porventura a narração
de Eudoxo cyzicense é em parte plagiada de
Hannon, bem poderam estes extranhos himantó-
podes ser os mesmos homens silvestres e villo-
sos, os gorillas, de que falia o capitão carthagi-
I António Ribeiro dos Santos, Memoria sobre a novi-
dade da navegação poriugue:^a no século xv, nas Mejrt.
de litterat. da acad. real das sciencias, tom. viii, pag.
342-344.
78 VARÕES ILLUSTRES
nez, e que não são outros, segundo o viajante
Du Chaillu^, senão os chimpanzés (Troglodytes
niger), tão frequentes nas selvas da Guiné c
principalmente no território de Gabon.
I Du Chaillu, Adventures in Equatorial A/rica, Lon-
don, 1881, 343, cit. em Peschel, Gesch. der Erdk., pag. 21.
\
CAPITULO VII
AS NAVEGAÇÕES NA COSTA DE AFRICA
DURANTE A ANTIGUIDADE
(Continuação)
Similhantes emprezas marítimas (as
navegações da antiguidade) se porven-
tura existiram, foram absolutamente ex-
tereis nos seus resultados.
Stockler, Memoria sobre a origina-
lidade dos descobrimentos portugueses.
As frotas, que, governadas pelos tyrios do
rei Hiram, partiam do Mar Vermelho até Ophyr
e Tarsis para levar a Salomão o oiro^ e as ri-
quezas do Oriente, andam, pela brevidade e es-
curidão do texto biblico, tão envoltas em es-
pesso nevoeiro, que os mais subtis commenta-
dores, accumulando thesouros de erudição e es-
I Reges, llv. iii, cap. ix, vers. 27-28. Paralipomen.
liv. iij cap. viii, vcrs- 18.
8o VARÕES ILLUSTRES
crevendo tratados volumosos, ainda não pode-
ram entender-se sobre qual foi o roteiro^ das
viagens, nem onde eram situadas aquellas aurí-
feras e opulentas regiões. Querem alguns que a
celebrada Opliyr da biblia correspondesse ao ter-
ritório de Sofala, na Africa portugueza oriental'.
Pretendem outros que a Ophyr biblica estava
situada no Indostão, na antiga região de um
povo chamado Abhira, segundo Lassen^,
Da navegação de Menelau, depois de expu-
gnada Tróia, não ha outro vestígio senão o que
na Odyssea se refere, onde não é fácil discernir
o que brotou da fecunda phantasia do poeta, e
o que se derivou de mais antiga e provável tra-
dição. Recontando o heroe grego a Telemacho
as suas aventuras, refere-lhe n'estas palavras as
suas largas navegações: «Muito em verdade pa-
deci, e errando longamente em minhas naus,
aportei ao oitavo anno a Chypre e á Phenicia,
c continuando a divagar, cheguei ao Egypto e
I Vivien de Saint-Martin, Hist. de la géogr., pag. 27.—
Ritter, Gesch. der Erdk. iind der Entdeck., pag. 18.
■■J Ritter, Gesch. der Erdk. und der Entdeck., pag. 18-20
VASCO DA GAMA 8l
fui ter á Ethiopia, e aos Sidonios, e aos Erem-
bos, e á Libya'.
Todas as reminiscências, que nos escriptos
da antiguidade se revelam acerca de primitivas
navegações em torno de Africa, ainda que se-
jam defectivas e suspeitas para individuar com
suficiente claridade uma só completa circum-
navegação, são bastantes comtudo para affir-
mar que entre os antigos andava mais ou menos
incerta e ennevoada a tradição de que uma parte
sequer das costas africanas tinha sido visitada por
algum navegador. O litoral da Mauritânia teria
porventura sido explorado pelos mareantes, que
traspassando as columnas de Hercules, se aven-
turassem a singrar por algum tempo no Oceano.
A costa, que vae escorrendo no Oriente desde a
bocca do estreito de Bab-el-Mandeb até muito ao
norte da ponta meridional da Africa, seria avis-
tada pelos navegantes, que aprestassem no Mar
I 'H -^'àp TT&XXà ■7Ta6(-)v jcal izoWk eTvaXr.ôstç
'H-j^apaev sv vT.uot, xal o^^ooltm 'irii r,XOov
KuTTpov, Ooivtjcviv Tê, y,%i Aí-^uirríou; ÍTZixXrfiv.^
Kxl Ai?úr,v.
OJyssca, liv. iv, vei-s. Si c S5.
82 VARÕES ILLUSTRES
Roxo as suas expedições. Viagem completa em
volta do continente, não ha na antiga historia
um só monumento irrecusável, em que possa
apenas por verisimil rastrear-se. Nem a antiga
navegação era de molde para tão ousadas aven-
turas, por mais que fossem eguaes ou superiores
ás dos modernos navegantes, a pericia e a audácia
dos antigos ^ Os navios fabricados com ignorân-
cia das regras e preceitos scientificos da archi-
tectura naval; pequenos, débeis, mal azados a
soífrer as tormentas do Oceano; as cartas hy-
drographicas nenhumas ; ignorada a bússola ; a
astronomia náutica na infância; por guias e pha-
I Oscar Peschel, fazendo notar a sua repugnância em
admittir com fácil credulidade a circumnavegação da
Africa, attribuida aos phenicios por mandado do Pharaoh
Necho, inclina-se todavia á opinião de que esta empreza
se não pôde contestar com o único fundamento de que a
sciencia e a pratica marítima dos antigos não bastavam a
tamanha e extraordinária navegação, porque, em seu en-
tender, a pericia naval dos antigos navegantes não era
inferior á dos europeus nos séculos xv e xvi, e cita como
provas algumas viagens, que na antiguidade se fizeram
com extrema velocidade, superior ao mais rápido anda-
mento dos navios actuaes. Peschel, GpscJi. i-^cr J\rdl;.,
pag. i8.
VASCO DA GAMA 83
roes as estrellas, principalmente as duas ursas,
para os gregos a maior, a menor para os phe-
nicíos^: taes e táo escassos eram na antigui-
dade os recursos navaes, com que aífrontar e
vencer as indómitas aguas do Oceano. E por isso
as grandes e notáveis expedições dos povos con-
quistadores quasi sempre foram em terrestres iti-
nerários. E a este propósito Montesquieu, táo no-
tável e táo habitualmente verdadeiro nas senten-
ciosas afiirmaç5cs, deixou escripto que em anti-
gos tempos se descobriam os mares conquistando
as terras, e hoje ao contrario se descobrem as
terras pelas viagens do mar 2.
Estribados nas palavras de Heródoto '\ que-
rem alguns acreditar que em tempos de Xerxes,
rei da Pérsia, se emprehendeu uma larga nave-
gação á roda de Africa. A origem romanesca
1 Montuclaj Hist. des fnathematiques, part. iii, tom. i,
pag. 88-93.
2 «Aujourd'hui Fon dccouvre les terres par les voya-
,^os de mer; autrefois on dtícouvrait les mers par In con-
(jucte dcs terres." Montesquieu, 7)c' Vcsprit d'
li V. XXI, cap.
3 Heródoto, jjt.^t., ii\. n, l.^). auii.
84 VARÕES ILLUSTRES
doesta singular expedição, segundo a refere o
historiador hellenico, contribuiria para imprimir
no seu reconto o caracter de uma lenda, e tor-
nar suspeita a existência da viagem, se os pró-
prios termos do escriptornão nos estivessem pre-
munindo contra a sua mesma relação. Heródoto
refere que, segundo contavam os carthaginezes,
um certo Sataspes violara uma filha de Zopyro.
Ora succedia que Zopyro era o amigo extre-
moso e fidelíssimo do rei dos persas, Dário,
aquelle modelo de heróica devoção, de quem
se conta nas historias a mais incrível c singular
fineza em prol do seu monarcha. O crime de
Sataspes accendeu a cólera de Xerxes, o qual o
condemnou no mesmo ponto a padecer o sup-
plicio n'uma cruz. A mãe do criminoso era, po-
rém, irmã de Xerxes, e se não tinha valimento
para o perdão, alcançou por suas traças, que a
pena capital lhe fosse commutada n''uma peri-
gosa e tremenda expedição em torno da Libya,
como quem dissera então no mais trabalhoso e
cruel degredo, que, segundo era tremendo então
o Oceano, se afigurava equivalente a uma ca-
tastrophc. Submetteu-se o mancebo ao preceito
do tyranno, havendo por melhor o lenho de um
funaragio que o madeiro do supplicio. Levava
VASCO DA GAMA 85
por mandado que, embarcando-se no Egypto e
saindo pelo estreito ao Atlântico, fosse costeando
a Africa até surgir no Mar Vermelho. Passou
as columnas de Hercules, dobrou o promontó-
rio Soloeis e endireitou a proa ao sul. Largos
mezes vagou pelo Oceano. Recresceram-lhe,
porem, taes difficuldades e contradicções, que
teve por melhor partido retroceder, volvendo ao
Egypto e d^ali á corte do rei persa. E por mais
que se desculpou de não ter podido continuar
cm sua empreza, porque o mar lhe náo consen-
tira navegar até fazer inteiro o gyro, o déspota
oriental mostrou-se inexorável, e o mallogrado
navegante houve de expiar na cruz o delicto de
deixar aos portuguezes a gloria de primeiros nos
descobrimentos do Oceano.
A viagem emprehendida em tempos de Ge-
lou, rei de Syracusa, por um navegador, que
rodeara o continente africano, apenas em Strabo
vem commemorada. Entre as noticias, que este
geographo attribue a Posidonio, se refere o dito
de Heraclides do Ponto, segundo o qual um
certo mago viera ter á corte de Gelon, de S}'-
racusa, asseverando ter o seu navio feito a cir-
cumnavegação da costa de Africa. Mas accres-
Centa o geographo, que Posidonio pozera escassa
8
86 VARÕES ILLUSTRÉS
fé em tal historia, porque se não firmava cm
plausiveis documentos f.
Segundo o testemunho de Plinio^, o antigo,
ainda podemos accrescentar ás tentativas de na-
vegação nas costas de Africa a viagem do his-
toriador Polybio, por ordem de Scipião Emilia-
no, no anno 145 antes da era christã^. Se a ex-
pedição em verdade se eífeituou, não passaria
porventura dos últimos confins da Mauritânia,
tomando por seu termo o cabo Não. E de certo
improvável que em tempos ainda próximos do
naturalista romano se tivesse realisado uma larga
exploração do litoral africano, e que Plinio per-
severasse impenitente nos seus erros, suppondo
innavegavel o Oceano.
Bem parcos fructos se derivaram da viagem
de Polybio para o mais perfeito conhecimento
da Africa meridional, porque o próprio navega-
dor nos deixou escriptas em sua historia as se-
1 Strabo, Geogr., liv. 11, cap. iii, n." 4.
2 Plinio, Hist. nat., liv. v, cap. i.
3 Polybio refere-se na sua historia a esta viagem afri-
cana, se bem que a parte de seu livro, em que estava es-
cripta a narração, é d'aquellas que se perderam. Polyb.,
Hist., lib. III, cap. Lix, ed. Didot, pag. i58.
VASCO DA GAMA 87
guintes palavras de notável significação: «Da
Ãsia e da Africa, de que maneira confrontem
cerca da Ethiopia, ninguém até o presente ha
podido afíirmar se é a terra continente, que d'ahi
se extende para o sul, ou se o mar é que as cir-
cumda^». Esta duvida não poderia subsistir no
espirito do navegante, se a remotas regi5es para
a banda do-meio dia e oriente houvesse chega-
do a frota de Polybio.
De quantas navegações em volta de Africa se
encontram memoradas nos escriptores gregos e
romanos, nenhuma é porventura com maior
conformidade havida por authentica do que a
viagem registrada no chamado Périplo do Mar
ErythreOy falsamente attribuido a Árriano, o hel-
lenico narrador das expedições de Alexandre.
O grego navegante, quem quer que fosse, parte
de Berenice e vae discorrendo com suas singra-
duras ao longo da costa ethiopica do Mar Ver-
melho até dobrar o cabo Àromata ou Guardafui
(Djard Hafun, dos árabes). D''ali procede cos-
teando a Africa oriental até Zanzibar % e chega
1 Polybio, Hist. nat., liv. iii, cap. xxxviii, ed. Didot, pat^.
143.
2 Vivicn de Saint- Martin, Hist. de la sféog^r., pag. 189-
iqo,
88 VARÕES ILLUSTRES
até um ponto que, na opinião de Peschel, demo-
rava nas cercanias de Quiloa^
Poderia pois na antiguidade ter havido, por
um singular privilegio de ardideza e temeridade,
quem tentasse commetter a que se afigurava
geralmente por impervia e tenebrosa massa de
aguas, vedada pela ciosa natureza á audácia hu-
mana. Mas nenhum monumento de irrefragavel
auctoridade, nenhuma tradição ininterrupta e uni-
versal ficou permanecendo, a qual podesse de-
monstrar que se tivesse rematado a empreza
admirável de rodear navegando as terras africa-
nas desde o Mediterrâneo ou o Atlântico Occi-
dental até ao seio Arábico ou Mar Vermelho.
Se não de tão assombrosa magnitude como
os descobrimentos portuguezes até abicarem
seus baixeis ás terras indianas, ao menos em
certa maneira extraordinárias é conducentes ao
trato e communicação de povos afastados, se
conservaram nas historias, como feitos incon-
troversos e notáveis, algumas expedições na an-
tiguidade. Quem poderia, porventura, duvidar
de que Alexandre, o bellicoso chefe macedónio,
levou com as suas armas os seus triumphos ate
I Peschel, Gesch. der Erdk., paL^. 16, 17 c 53.
VASCO DA GAMA 8()
á península do Ganges em suas terrestres excur-
sões e abriu mais ampla senda entre os antigos
á communicaçáo do Occidente com as regiões
orientaes? Quem não crê que das expedições do
grande macedónio advieram, como testifica Stra-
bo, novas luzes á sciencia geographica'?
Quem poderia contestar que desde o undé-
cimo século a Europa guerreira arremetteu por
muitas vezes contra a Ásia, no impetuoso mo-
vimento das cruzadas, e que por ellas se estrei-
taram novamente os vínculos de duas civili-
sações? Se pois táo espantosa façanha tivera
alguém realmente posto em obra, qual era a na-
vegação desde as extremas occidentaes do mun-
do conhecido até ao litoral da Arábia, como te-
riam os povos europeus, em tempos de íUumí-
nada cultura scientífica e social, os gregos e os
romanos principalmente, deixado cair no olvido
mais completo esta maravilhosa revolução, a qual
teria transmudado inteiramente a sciencia, o com-
mercio, a civilisação na antiguidade? As primei-
ras novas dos descobrimentos portuguezes de-
ram tão alto rebate em toda a F.uropa, como
1 Strabo, Geogr., liv. i, cap. ii, n." i, cJ. Didot, Paris,
i853, pag. II,
gO VARÕES ILLUSTRES
se improvisamente se cambiaram as condições
da sua existência social ^ Todas as nações euro-
pêas até ás da remota e boreal Scandinavia se-
guiram com olhos curiosos e inquietos cada nova
singradura, com que em seus baixeis aventurei-
ros se iam adiantando os navegadores de Por-
tugal. Quando os navegantes portuguezes chega-
ram á Guiné, a fama doeste feito, o mais ines-
perado e assombroso de quantos registrara até
entáo a historia marítima do mundo, correu por
toda a Europa^. Como seria, pois, que o mesmo
feito antecipado em remota antiguidade não dei-
xaria um só vestígio na historia politica e mer-
cantil, e apenas se conservaria envolto em fabu-
losos episódios e contradicções inextricáveis em
raros historiadores, geographos e polygraphos
gregos e romanos?
1 Barros, Decad. i, liv. i, cap. xr. — «Spargendo-sc a
fama deste feito pellas partes do mundo, ouve de chegar
á corte dei Rey de Dinamarca e de Suécia e Noruega
etc.» Azurara, Chron. do descobr. e conq. de Guiné, cap.
xciv, pag. 441.
2 «Neste tempo por toda a Europa se fallava neste des-
cobrimento da Guine, como na mais nova cousa, que se
podia dizer.» Barros, Decad.. i^ liv. i, cap. vu.
Vasco da gama
E como será crivei que emprezas maritimas de
tão notável magnitude, quaes se dizem aconteci-
das -na antiguidade, passassem como feitos quasi
ignotos, sem accordar um echo na sciencia? Pois
navegavam Hannon, Eudoxo, os mareantes ás
ordens do curioso Pharaoh, velejavam as gen-
tes maritimas das orlas do Mediterrâneo, os ty-
rios, os phenicios, os carthaginezes, os gregos, os
romanos, os iberos, e a antiguidade permanecia
absorta nas suas palmares ignorâncias, nos seus
erros hereditários, nas suas fabulas pueris acerca
do Oceano e seus mysterios, da Africa e dos
seus habitadores? Nem o trato mercantil, nem
a geographia houveram de lucrar o minimo pro-
gresso ? Ficaram memorados n'uma epopéa ce-
leberrima os errores e navegações do velho Ulys-
ses, que não passaram de um recanto do Mar
Egêo, perpetuaram-se no mytho e no poema as
expedições dos argonautas até o Phaso, e ha-
veriam de riscar-se da tradição e da memoria
as extensas navegações, que ligavam o mundo
antigo ás terras escondidas na penumbra do
. prodígio e do mysterio ?
Um auctorisado geographo contemporâneo,
que não á parco em contestar aos portuguezcs,
quanto pôde, a originalidade em suas navegações.
92 VARÕES II.LIJSTRES
comparando as viagens da antiguidade com os
modernos descobrimentos, confessa que entre os
antigos houve de facto alguns périplos, mas ver-
dadeiros viajantes, taes como a edade moderna
os produziu, doestes que vão ousadamente des-
cobrir as cousas ignoradas, penetrando em povos
desconhecidos, internando-se em regiões inexplo-
radas para trazer d^ali, a risco cie suas vidas,
novas informações, que enriquecem a sciencia,
taes viajantes como estes, não os conheceu a an-
tiguidade ^
Para tornar suspeitas em grande extremo, não
somente as suppostas circumnavegações, mas
ainda qualquer navegação, que se extendesse até
ao equador, bastaria considerar o que diz Pto-
lemeu quando ao refutar as asserções de Mari-
no de Tyro, assevera que ninguém até o seu
r^«De vrais voyageurs tels que les ont formes les temps
modernes, allant, hardiment à la découverte des choses
ignorées, pénétrant chez les peuples inconnus, s'enfon-
çant dans les pays inexplorés, pour cn rapportcr, au pcril
de leur vie, les informations nouvclles, dont s'enrichit la
science, des voyageurs de ce caractere, rantiquité, n'en a
guèrc connu.» Vivien de Saiiit-Martin, Hist. de la géo-
gr., pag. i5o.
VASCO DA GAMA 98
ternpo havia cursado as regiões equatoriaes, e
que tudo quanto d^ellas se contava era apenas
especulação e conjecturai
I «Utrum vero illud quod cst sub hac linea (aequino-
ctiali) habitctur, nos hujus scientiam non comprehendi-
mus, quam aliquis non pervenit adcam . . . usquc ad
diem hunc nostrum.» Ptolem., Almagesto, Dictio., 11,
cap. VI. Veneza, i5i5, foi. i3 vers.
CAPITULO VIII
A SCIENCIA GEOGRAPHICA NA ANTIGUIDADE
O saber dos antigos nos tempos da
sua máxima extensão alargou-se por
dois terços do nosso continente, a
quarta parte da Ásia situada ao su-
doeste, e o terço septentrional da
Africa.
Peschel, Hist. da geogr, pag. 2g.
O que cl sciencia e a geographia aproveitaram
entre os antigos coni as suppostas ou reaes ex-
pedições á costa de Africa, resulta manifesto,
quando se vão inquirir as obras, cm que a anti-
guidade consignou o que sabia, ou fabulava, acer-
ca do nosso globo, da distribuição das terras e
das aguas, de quaes regiões eram povoadas ou
habitáveis, de quaes desertas e incompativeis com
a humana organisação, de que formas singulares
e extranhas á fauna e á flora conhecida havia a
natureza dado mostra nas zonas diversíssimas
da terra.
96 var5es illustres
Quanto á forma e aos limites da Africa, e ao
modo por que este grande continente era cir-
cumdado pelo Oceano, consultados os cosmogra-
phos, os historiadores, os philosophos, os eru-
ditos de mais illustre nomeada entre gregos e
romanos, apenas se nos deparam erros, dubi-
tações, conjecturas, ou flagrantes dissidências
em suas mal-seguras ou phantasiadas opiniões.
E começando pelos gregos da edade áurea, e
quando a Grécia cifrava em suas cogitações a
flor do pensamento e a nata da sciencia, vemos
o cognominado pae da historia dizer-nos unica-
mente que a Libya ou a Africa é cercada pelo
mar, sem accrescentar uma palavra a respeito
da sua forma approximada, e da sua tão notá-
vel terminação em ponta meridional . O histo-
riador grego professa, porém, a verdadeira opi-
nião ácejTca de serem contínuos um com o outro
os dois mares, o Atlântico e o Mar oriental.
«Todo o mar, onde navegam os gregos ou hel-
lenos (diz Heródoto), o que está para alem das
columnas de Hercules, o qual tem o nome de
I Heródoto, Hist., liv. iv, cap. xlií.
VASCO DA GAMA 97
Atlântico, e o Erythrêo, não constituem mais de
que um só e mesmo mar^»
Andaram discordantes os antigos sobre este
ponto fundamental da geographia, qual era o de
saber se o Atlântico e o Mar das índias se
communicavam entre si, e se pelo conseguinte
a Africa era ou não circumdada pelas aguas na
sua peripheria. Emquanto homens tão eminentes
quaes foram, alem de Heródoto, o geometra
Eratosthenes^, o geographo grego Posidonio-^,
professavam, de certo de pura intuição, e sem
nenhum testemunho experimental, a continuida-
de necessária do Oceano, o nome de Hippar-
cho, do maior astrónomo da antiguidade, a quem
a sciencia deveu a primeira determinação da obli-
quidade da ecliptica e do anno trópico, e o mais
antigo catalogo de estrellas, escudava a doutri-
na de que o Oceano Indico se reduzia apenas a
um grande lago ou mar interior e mediterrâneo,
porque a costa africana encurvando-se para les-
te, ia, segundo o astrónomo, approximar a sua
extremidade oriental á peninsula de Malaca. Pto-
1 Heródoto, Hist., liv. i, cap. ccii.
-í Strabo, Geogr., liv. i, cap. iii, n." i3, ed. Didot, paj;. 47.
3 Strabo, liv. 11, cap. iii, n." 3, ed. Didot, pag. 81.
9
98 VARÕES ILLUSTRES
lemeu, que tanto renome alcançou entre os an-
tigos e modernos, que as suas doutrinas se re-
ceberam durante largo tempo como dogmas nas
sciencias cosmographicas, professou e defendeu
a opinião de que não havia communicação entre
o Oceano Indico e o Mar occidental. O celebra-
do geographo Strabo, que ílorecia em principios
do primeiro século da era christã, e que antes
de Ptolemeu compendiou n'uma obra eruditís-
sima o estado dos conhecimentos geographicos
no seu tempo, descreve a Libya ou Africa, attri-
buindo-lhe a figura de um triangulo rectângulo,
cuja base é a linha terminada entre o Egypto e
as columnas de Hercules. O outro lado ou cá-
theto adjacente ao angulo recto, é o que decorre
desde o Nilo até á Ethiopia, prolongado até ao
Atlântico; o terceiro lado ou a hypotenusa, se--
gundo os próprios termos do geographo «é toda
a região, que está junto do Oceano entre os ethio-
pes e os mauritanos')).
No conceito de Strabo, venerado como texto
da máxima auctoridade entre os antigos, a Afri-
ca, em vez de ser inscripta nHim triangulo ap^
Strabo, Geogr.j, liv. xvii, cap. 111, n." i.
VASCO DA GAMA ()Q
proximadamente equilátero, cujo vértice meri-
dional está situado no Atlântico, ou mar exte-
rior, tem o extremo ao Oriente nas cercanias do
Mar Erythrêo ou, como hoje o appellidam, Mar
Vermelho.
Strabo, descrevendo em outro logar da sua
Geographia a forma do continente africano,
tal como por suas conjecturas a ideara, diz
que o Htoral opposto á Europa é represen-
tado por uma linha recta, que desde Alexandria
se tirasse até fenecer nas columnas de Hercu-
les, e o lado, que para a banda do meio-dia é
contíguo ao Oceano, depois de correr por grande
espaço da parte da Ethiopia parallelo .ao limite
septentrional, se inflecte ou dobra até ir termi-
nar em ponta aguda um pouco ao occidente das
columnas. Assim, diz Strabo, é a figura da
Africa, á maneira ou siaiilhança de um trapé-
zio ^ Não se pôde conceber mais eloquente e se-
guro testemunho de quanta e quão profunda era a
ignorância do grande geographo hellenico acer-
ca da exacta configuração da península africana.
E note-se que Strabo florecia no primeiro sc-
StrabOj Geogr., liv. ij, cap. v, n.° 33,
100 VARGES ILLUSTRES
culo da era christã, sob a dominação de Au-
gusto e de Tibério, quando a civilisação ro-
mana tocara o ápice, quando os exércitos leva-
vam triumphantes as águias imperiaes a apar-
tadas regiões do mundo conhecido, e quando
Elio Gallo, amigo e companheiro do geographo,
segundo elle próprio declara em sua obra, che-
gara com as legiões romanas até á Arábia,
quando Gneo Pisão, que regera a provincia de
Africa, havia ministrado ao escriptor algumas
informações ^
E para que avaliemos o que da Africa ou Li-
bya achamos registrado no texto de um escri-
ptor, que resumia no seu tempo toda a sciencia
geographica, reparemos na simpleza das pala-
vras, com que nos premuniu contra a incerteza
dos seus conhecimentos africanos. «Tudo o mais
(diz Strabo) quanto junto ao vértice d''esta fi-
gura está já subjacente á zona tórrida, apenas
o pomos por conjectura, porque é inaccessivel;
e d^ahi resulta que não é possível o dizer qual
é d"'esta região a máxima largura 2». E mais adian-
1 Strabo, Geogr., liv. 11, cap. v, n.° 33.
2 Strabo, Geogr., liv. xvii, cap. iii, n.» i.
VASCO DA GAMA 101
te, ao concluir a descripçáo da Libya, declara
sinceramente a sua ignorância acerca da maior
porção da Africa, escrevendo: «Não se podem
explicar os limites da Ethiopia, nem da Libya,
ainda mesmo da que confronta com o Egypto
ou está junto do Oceano^».
Reconhece e propugna Strabo entre os anti-
gos a continuidade dos mares, que circumdam
a terra continente. Em seu conceito, a parte
solida e emergente, que as aguas estão banhando
por toda a parte, é uma ilha de immensas pro-
porções. E em confirmação da sua doutrina ad-
duz o geographo greco-romano que todos os que
ousaram circumnavegar os continentes e hou-
veram de retroceder em seu caminho, não vol-
veram sobre seus passos, porque alguma terra in-
terposta lhes obstasse, mas porque, tornando-se
o mar innavegavel, os coagira a solidão das
aguas e a penúria das suas matalotagens a de-
sistir da empreza começada^.
O auctor do Périplo do Mar Erfthrco, ou
fosse Arriano, como alguns presuppozeram, ou
1 Strabo, Geogr., liv. xvii, cap. iii, n." 23.
2 Strabo, Gcof^r.. liv. i, cap. i. n." í^.
102 Varões íllustres
um grego desconhecido, dando como incon-
cusso que o Oceano desde o cabo Rhaptum
para o Meio-dia ainda não fora navegado, afíir-
ma por simples, mas exacta conjectura, que alem
daquelle promontório o mar encurvando-se para
o occidente no sul da Ethiopia, da Libya e da
Africa se ia continuar com o Oceano occidental^
Ptolemeu assigna por limites á porção conti-
nental do nosso globo uma terra incógnita, que
íica adjacente aos povos orientaes da Ásia, os
Sines e os Seres, ao sul uma região egualmente
desconhecida, cercada pelo Oceano Indico, e abra-
çando a parte mais meridional da Ethiopia, cha-
mada Agisymba^. Na concepção do geographo
alexandrino esta região é de extrema largura^. De
maneira que a Africa, em vez de ir-se coarctando e
restringindo ao avançar para o Meio-dia, pelo
contrario se vae a uma c outra parte dilatando.
O Mar das índias era, segundo a crença de Pto-
1 Pcripí. Mar. Erythr., cap. xviii, cm Pcschel, Gesch.
der Erdk., pag. 17-18.
2 Ptolem., Geoi;r., liv. vii, cap. v, ed. de Francfort,
1619, pag. i8í.
3 Ptolem., Geogr., liv. iv, cap. i.v, pag. 11 5.
VASCO DA GAMA Io3
lemeu, um mar interior e cerrado á similhança
do Mediterrâneo ^
Nenhuma noção, sequer approximativa, da
forma verdadeira do continente africano se nos
depara nos escriptos da antiguidade. Alguns
escriptores a partir do Golfo Arábico ou Mar
Vermelho figuravam desviada para o oriente a
costa oriental da Africa, encurvando-a e atormen-
tando-a a seu talante até ir entestar com as re-
giões orientaes da Ásia. O Oceano Indico appare-
cia n^esta concepção systematica à /rzon da anti-
ga geographia como um mar interior, á simi-
lhança do Mediterrâneo 2. Toda a communicação
entre o Atlântico e o Mar das índias desappare-
cia totalmente e a navegação á roda da Africa fi-
cava perpetuamente prohibida pela ciosa nature-
za, que assim quizerá condemnar os homens das
mais apartadas regiões á eterna separação. Na
theoria geographica de Ptolemeu, a Africa, em
vez de ter a forma triangular e de ir estreitando
mais e mais até que um extremo promontório a
í Vivien de Saint-Martin, Hist. de la géogr.. Paris,
1873, pag. 207.
2 Pcschel, Gesch. der, Krdk., pag. 55-57- Vivien de
Saint-Martin, Hist. de la géogr., pag. 207.
104 VARÕES JLLUSTRES
terminasse alem do equador, se ia ensanchando
á medida que se alongava desde o Septcntriáo
até ao Meio-dia^
Eram tão indefinidos, tão confusos, tão con-
jecturaes e desprovidos de fundamento experi-
mental os pareceres acerca da Africa, entre os
antigos, que passava quasi em provérbio o ser
inhabitavel a zona intertropical. Aristóteles,
com a auctoridade omnipotente do seu nome,
decretara como dogma que as regiões compre-
hendidas entre os trópicos não consentiam hu-
mana habitação-. Esta opinião perpetuou-se
triumphante nos escriptos dos gregos e roma-
nos até alcançar a sua maior consagração na
geographia do alexandrino Ptolemeu. E é no-
tável que fosse um portuguez o primeiro que,
depois dos assombrosos descobrimentos do sé-
culo XV, ousasse descrer abertamente da dou-
trina do grande mestre e em phrase irónica e
zombeteira chancear das suas opiniões. Foi este
portuguez o navegador Diogo Gomes, que des-
1 António Ribeiro dos Santos, Memoria sobre a novi-
dade da navegação portugue!^a no século xv, nas Mem.
de litterat. da acad. real das sciencias, tom. viii, pag. 355.
2 Aristot, Meteorologia,, liv. ii, cap. v.
VASCO DA GAMA lOD
crevendo na sua obra De prima inventione Gui-
neae a opulenta vegetação da costa dos Jalofos,
se levanta contra o dogma de Ptolemeu em pa-
lavras, que resumem uma inteira revolução na
geographia. «E tudo isto escrevo eu com per-
missão de sua mercê, Ptolemeu, que em ver-
dade muito boas cousas escreveu acerca da
divisão do mundo, mas n'um ponto pensou er-
roneamente. Em três partes distribuiu a terra
conhecida, nas zonas medias habitáveis, na árcti-
ca inhabitavel por causa do seu frio, e na tró-
pica egualmente incapaz de habitação em rasão
do seu calor. Porém agora o contrario se demon-
strou. Junto ao equador habitam innumeraveis
tribus negras, e as arvores se alteiam a incriveis
dimensões^)). E todavia Gemino, século e meio
depois de Aristóteles, já resolutamente profes-
sava que a terra era entre os trópicos habita-
da 2. E Polybio no seu tratado Da terra habi-
1 Diogo Gomes, De prima inventione Guineae^ publica-
do pelo dr. Schmeller nas Mem. da acad. das sciencias
de Munich, 1845. Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Eyitdeck,
pag. 71.
2 Vivien de Saint-Martin, Hist. de la i^co^r.,, pag. 14S
I06 VARÕES lí.LUSTRES
tavel junto do equador deixara escripto que os
logares próximos á linha equinocial, não so-
mente eram povoados, senão que disfructa-
vam melhor clima que as terras tropicaes^
O máximo orador e o philosopho mais illu-
minado e pensador entre os romanos, Cicero,
teve para si, como dogma incontrovertivel, que
somente as duas zonas temperadas possuíam
o singular privilegio de habitáveis 2. Para o
lyrico de Roma, quando a Libya nas suas re-
giões septentrionaes fora cursada já triumphan-
temente pelos exércitos da republica e do impé-
rio, ainda a Africa intertropical é a terra do-
mibus negata, a região perpetuamente incom-
patível com a humana habitação pela demasiada
vizinhança ao carro do soP. Assentava-se que
pouco abaixo do parallelo de 12° ao norte do
í Polybio, no tratado Tvspt ttíç Trspl íoviacpivòv oíx-t.gcw?, cit.
em Vivien de Saint-Martin, Hist. de la géogr.
2 Cicer., Somnhim Scipionis, em Ciceri Opera omniaj,
ed. elzevir., 1661, pag. i3i8.
3 Pone sub curru nimium propinqui
Solis, in terra domibus negata:
Dulce ridentení Lalagem amabo,
Dulce loquentem.
fioracio, Odes, liv. ode xxii,
VASCO DA GAMA IO'
equador, principiavam aquelias terras ardentis-
simas, onde o calor excessivo tornava impossivel
a existência aos humanos organismos. Era como
se o sol, imitando os costumes guerreiros dos
povoadores da Africa intertropical, estivesse
ali sempre despedindo a suas hcrvadas frechas
e venábulos contra quem se aventurasse a ultra-
passar os marcos e fronteiras das terras habi-
táveis.
O antigo geographo Posidonio, citado por
Strabo, admittia como verdade incontestável que
a zona tórrida náo podia ser habitada ^
O próprio Strabo, expondo a repartição do
globo terrestre em cinco zonas, crê que é inha-
bitada a que está comprehendida pelos trópicos,
e considera egúalmente despovoadas as zonas
frigidas ou glaciaes, que decorrem desde os cir-
culos polares até cada um dos poios. Somente
em sua opinião são habitáveis as temperadas =^.
Segundo Strabo a terra habitada estava com-
prehendida entre o parallelo que passa pela Hi-
I Strabo, Geogr., liv. ii, cap. iii, ii." 3.
- (' Ao-.JcT.TO-j; ^í rà; àXXa^ [í^wva;], tt.v y.sv 5't7. /.a-j|/.a-, rò; ^è ^:x
tj/jy/jí.'» Strabo, Geoí;r., liv. ii, caj^. v, n.« 3, ed. Didot, pag. 91;
1 08 VARÕES • ILLUSTRES
bernia e a que elle descrevia como região cinam-
momifera, situada na margem meridional do
Mar Erythrêo^. Projectada n''um plano a terra
habitável, apparecia, segundo a opinião do geo-
grapho, na figura de uma chlamyde.
Era corrente entre os antigos a crença de que
certas regiões do Mar Atlântico eram totalmente
innavegaveis, ou pelo menos tão cortadas de con-
tradicções e embaraços, que ninguém se aventura-
va a devassar os seus mysterios. Acreditavam
uns, com Scyllax e Plutarcho, que o Oceano se não
podia navegar, porque as suas aguas eram pou-
co profundas e cenagosas; o seu leito de vasa
e lodo abundantíssimo, a sua superfície alastra-
da de plantas marinas em tão copiosa multi-
dão, que não era dado ao navegante despear-se
em meio do seu fluctuante labyrintho. Haviam
outros para si que o Oceano se não podia na-
vegar por ser immovel, como se fora difficil
romper-lhe o seio e cursar "livremente á sua
flor. Suppunham alguns que os ventos estavam
em certas paragens como que represos e estan-
cados, privando os mareantes do recurso, que
í Strabo, Geogr., liv. ii, cap. v, n." 14, pag. 98.
VASCO DA GAMA I09
na ausência dos mais modernos propulsores se
reduzia em grande parte ao panno dos navios.
No conceito geographico de Strabo o mar ou
o Atlântico náo pôde . navegar-se pela sua im-
mensidade e solidão ^
Phantasiavam os mais propensos a prodigios
que alem de certas latitudes era a luz confusa e
vaga, de maneira que o triste navegador não
podia ver o caminho que levava. Affirmavam
alguns, que nem estrellas appareciam luzindo
nos espaços, accrescentando-se por este modo á
sombria escuridão dos desertos oceânicos a mo-
nótona solidão do firmamento. Imbuídos nas
ficções da mythologia, que ainda então confron-
tava de mui perto com a sciencia geographica,
povoavam outros o Atlântico de prodigios e
de monstros implacáveis, que fariam hesitar a
Jason e ao próprio Hercules e recuar assom-
brados e vencidos os mais impertérritos nave-
gadores. A outros inspirava o largo Oceano
como que um horror sagrado, porque o sol
ao sepultar-se no ultimo Occidente, se immer-
strabo, Geogr., liv. 11, cap. v, n." 6, ed. Didot, pag. gS.
10
no VARÕES ILLUSTRES
gia afogueado no seu pélago e á similhança de
um immenso ferro em braza, que de impro-
viso nas aguas se afundisse, celebrava as suas
exéquias temerosas com hórrido estridor ^ Estas
singulares e extravagantes opiniões tinham para
escudar-se os nomes dos mais celebres aucto-
res da antiguidade, e entre elles Séneca, o
philosopho, que tão perspicuamente se anteci-
pou, adivinhando vagamente algumas doutrinas
verdadeiras das modernas sciencias naturaes;
para quem, todavia, o Oceano era o maré
immotiim e apigra moles, o mar immovel e pre-
guiçoso 2; Plinio, o antigo, que de verdades in-
suspeitas e de fabulas infantis entreteceu a sua
vasta encyclopedia, a que deu o nome de His-
toria natural; Festo Avieno, para cuja phanta-
1 Strabo refere que o geographo grego Posídoftio qiií-
zera, indo ao Atlântico Occidental, por sua própria inspec-
ção ocular, cerlificar-se da lenda popular, segundo a qual
o sol, ao immergir-se no Oceano, fazia um ruido extranho
e temeroso. Strabo, Geogr., liv. iii, cap. i, n.« 5, pag. i38.
2 «Stat immotum maré et quasi deficientis in suo fine
naturce pigra moles . . . confusa lux alta caligine, et inter-
ceptus tenebris dies . . . nuUa aut ignota sidera». Séneca,
Lib. Snasor, pag. 2, ed. Beckmann.
VASCO DA GAMA I I T
sia geographica, dominada pelas fabulas ardilo-
sas dos navegadores carthaginezes, não ha se-
quer uma bafagem, que aos baixeis possa servir
de propulsor no vasto Oceano, envolto perpe-
tuamente no seu véu caliginoso ' , o próprio
Tácito, o grave e austero historiador, que, se
foi um profundo conhecedor do humano cora-
ção e da romana sociedade, obedeceu na inter-
pretação da natureza aos erros e preconceitos
do século, em que viveu.
Não é porém justo contestar á antiguidade
que muitas verdades geographicas, de envolta
com erros lastimáveis e fabulas infantis, estão
compendiadas no que ella nos legou nas obras
dos seus mais notáveis escriptores. Dos des-
cobrimentos geographicos dos phenicios não res-
tou outra memoria senão o que d''elles apren-
deram e trasladaram os hellenos, que com essa
nação navegadora se acharam desde tempos mui
I «(Desint quod alto flabra propellentia
NuUusque puppim spiritus coeli juvet
Dehínc quod ethram quodam amictu vestiat
Caligo, semper nebula condat gurgitem,
Kx crassiore nubilum perstet die.»
Fcst. Avieii,, Ora marítima, vers. 385-í
I I 2 VARÕES ILLUSTRES
remotos em frequente communicação. D'elles re-
ceberam os gregos a divisão da terra conhecida
em três grandes regiões, Europa, Ásia e Libya^
O seu extenso trato mercantil, exercitado por
caravanas em caminhos terrestres até mui longe
em terras orientaes, e as suas extensas navega-
ções no Mediterrâneo e no Mar Erythrêo ou In-
do-arabigo, davam-lhes occasião a que fossem
desde tempos mui antigos as suas noticias geo-
graphicas mais copiosas e exactas que as dos
povos seus contemporâneos-. Se náo foi verda-
deiro o périplo de Hannon, e se os carthagine-
zes não chegaram, como pretendem alguns mo-
dernos, até o Gabo Verde ou ao Cabo das Pal-
mas'^, é todavia indubitável que foram de todos
os antigos navegadores os que mais se aventura-
ram no Oceano. Similhantes aos portuguezes nos
primeiros tempos dos seus descobrimentos africa-
nos, os carthaginezes, no seu empenho de mo-
1 Ritter, Gesch. der Erdk. imd der Entdeck., pag. i6.
2 Ritter, Gesch. der Erdk.und der Entdeck., pag. 17-18.
3 «Am wahrscheinlichsten ist die Fahrt wenigstens
bis zu dem weit vorspringenden Cap Verde der spatern
Zeit vorgedrungen, vielleicht bis zum Cap Palmas.» Rit-
er, Gesch. der Erdk. und der Entdeck., pag. 23.
VASCO DA GAMA I I D
nopolisar a navegação, escondiam, quanto pos-
sível, aos demais povos as derrotas, que seguiam
no Atlântico'. D'elles, porém, quando os sub-
metteram, herdando com suas victorias o senho-
rio dos mares, derivaram os romanos a respeito
da geographia muitos conhecimentos que appa-
recem consignados nos seus mais illustres escri-
ptores^.
Taes eram, brevemente summariadas, asidéas
que acerca da Africa vogavam entre os antigos.
Ou eram erros manifestos nos geographos, que
mais distavam da verdade, ou noções incomple-
tas e confusas n''aquelles, que, de mais perspi-
cuo e subtil entendimento, suppriam com a de-
ducção o conhecimento experimental e mais se
empenhavam por acercar-se á natureza.
1 Strabo, liv. xvii, cap. i, n.° 19, pag. 681. — Ritter, Gesch»
der Erdk., und der Entdeck.j pag. 3o.
2 Ritter, Gesch. der Erdk., und der Entdeck.j pag. 23.
CAPITULO IX
A GEOGRAPHIA DA EDADE MEDIA
O conhecimento das leis fundamen-
taes da natureza nas regiões conhecidas
limitou-se . . , á repetição das concepções
da antiguidade, preferindo-se com fre-
quência as mais erróneas.
Peschel, Hist. da geogr., pag. gS.
Depois que deixou de luzir a civilisação hel-
lenica e a romana, que a herdou e usufruiu, sem
comtudo a melhorar e enriquecer pelo que toca
á sciencia e geographia, seguiu-se a edade mé-
dia, que não foi de todo o ponto escura e tene-
brosa, como d^antes se presumia, e onde, muito
ao revez, ainda havia diífundidos uns clarões,
como de sol, que no occaso se escondia. Os pri-
meiros séculos dVquella edade foram, de feito,
á similhança de um crepúsculo da tarde após
um dia, em que o astro principal brilhara com
toda a pompa e luzimento. Descortinava-se ao
1 ib VARÕES ILLUSTRES
longe, a perder-se como que em remotos ho-
rizontes, a esplendida, mas incompleta civili-
sação da antiguidade. Seguiram-se depois al-
guns' séculos de mais escassa luz, como se um
longo eclipse offuscára, sem de todo entene-
brecer o firmamento. Mas no século xii prin-
cipiam as sombras a dissipar-se. O xiii é já
um século de luz e claridade. Recomeçam a
distinguir-se melhor delineadas, mais visíveis
as feições da antiguidade. Já ha sábios, eru-
ditos, pensadores, que desentranham e inter-
rogam • os thesouros da intelligencia, escondi-
dos na crypta centenária das clássicas edades.
A geographia e as sciencias cosmographicas,
segundo nol-as havia legado o génio dos anti-
gos, encontram nos espíritos selectos devotadís-
simos cultores, que todavia a seu talante as
interpretam e commentam, fazendo retrogradar
os conhecimentos geographicos para alem dos
tempos, em que haviam ensinado os Plinios
e Ptolemeus, os Strabos e Pomponios. Os es-
criptores, que floresceram desde o v ao ix sé-
culo, e entre elles Macrobio, o hespanhol Paulo
Orosio, Cosmas, appellidado o Egjycio ou In-
dicopleustas, o encyclopedico Isidoro de Sevi-
lha, — o Humboldt do vii século, — Marciano Ga-
VASCO. D A GAMA 1 l"]
pella, o venerável Beda, o anonymo de Raven-
na, Francon o Scolastico, Adelbold, de Utrecht,
e os geographos árabes Masudi e Ibn Haukal,
todos ignoraram a forma do continente africano
c o seu prolongamento alem do equador, e des-
conheceram inteiramente as regiões, que se dila-
tam para o sul desde a Ethiopia oriental. Ensi-
navam com muitos dos antigos que era inhabi-
tavel ou despovoada a zona tórrida, ou haviam
por demonstrado que era impossível navegar no
Oceano alem dos términos impostos pelas co-
lumnas de Hercules, ou finalmente apenas pos-
suíam noç5es incompletas e indecisas acerca das
costas da Africa, banhadas ao occidente pelo
Atlântico ^ .
A partir do século xii principia a operar-se
nos espíritos aquella saudável revolução, que se
manifesta já poderosa no xin século e que chega
á sua maturidade nos dois séculos seguintes.
Apparecem na christandade alguns d'estes en-
genhos eminentes, que das summidades intelle-
I Visconde de Santarém, Recherches sur la découverte
des pays situes sur la cote occidentale d' Afrique, au dela
du cap Bojador, Paris, 1842, introd., pag. xxvii-xxxvi.
Il8 VARÕES ILLUSTRES
ctuaes, aonde culminam, estão já entrevendo as
formas do futuro pensamento, assim como o
viandante, que se altea ás cumieiras das altas
serranias, alcança, ainda que vagos e longinquos,
mais amplos e extendidos horizontes do que os
homens, que estanceam na fundura dos valles e
das quebradas. Florescem principalmente nas
Hespanhas alguns árabes, que pelos seus es-
criptos conquistaram um logar assignalado na
historia da intelligencia. Mas os erros e as phan-
tasias geographicas, auctorisadas com o sêllo
venerando dos antigos escriptores da Grécia e
Roma, continuam a ter curso e valimento.
A zona tórrida é ainda considerada inhabita-
vel. Á edade média, com poucas excepções, ad-
mittiu com terminante afíirmação esta doutrina
como verdade absoluta, esquecendo algumas
antigas opiniões, quê antecipando-se aos futuros
descobrimentos, a proclamavam compatível com
a humana habitação ^ O exame de um grande
I «Die Behauptung von der Unbewohnbarkeit der heis-
sen Erdgurtel gegen die bereits richtige Erkenntniss des
Alterthums, mit verscharften W^orten vorgetragen wurde,
eine Irrlehre, welche bis zum i5. Jahrhundert die Fort-
VASCO DA GAMA IIQ
numero ^dos mais auctorisados e famosos mo-
numentos cartographicos, não deixa a minima
duvida de que era esta a doutrina professada
pelos cosmographos antes das navegações e
descobrimentos portuguezes^ No próprio map-
pa-mundi de Marino Sanudo de i32o, adjunto á
sua notável obra Secretiim Jidelhim criicis, o
qual é porventura de todos os da edade média
o que menos se distanceia da verdade acerca da
Africa, apparece logo ao sul das nascentes do
Nilo a legenda característica aRegio inhabitabilis
propter calorem'^i>,
N^este ponto, Honório de Autun, na sua Ima-
go miindi, Brunetto Latini, um dos homens de
mais profunda erudição, o mestre celeberrimo
do Dante, na sua obra intitulada Li livre dou
schritte der Erdkunde immer wieder auf Abwege fúhrcii
sollte.M Peschel, Gesch. der Erdk.^ pag. g3.
1 Vise. de Santarém, Hist^ de la Cosm. et de la Car-
iogr., II, pag. I.
2 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr.^ III, pag. 202. Veja-se a carta de Sanudo no Atlas do
viseondc de Santarém, e em Pesehel, Gesck. der Krdk.,
carta gravada appensa á pag. 19 (.
I20 VARÕES ILI.USTRES
Tresor, não estão, como n^outros pontos capi-
tães da geographia africana, mais adiantados que
os seus predecessores na antiguidade e nos tem-
pos médios. Os dois grandes luminares do sécu-
lo XIII, o dominicano allemão Alberto de BoU-
stadt, cognominado Magno, e superior a elle o
franciscano inglez Roger Bacon, posto que sem
despertar echo á sua doutrina, começam a impu-
gnar a antiga opinião de que as regiões intertro-
picaes não consentem habitadores. No sentir do
philosopho germânico eram tidas por habitá-
veis as margens e as ilhas dos mares intertropi-
caes^ Roger Bacon, o mais eminente pensa-
dor da edade média, somente julga por incapaz
de habitação o hemispherio austral do nosso
globo^. Dos escriptos d*estes sábios, porém, se
manifesta que nos conceitos positivos acerca da
Africa meridional e occidental se não avanta-
I Alberti Magni. De natura locorwn, lib. i., cap. vi. —
Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Enídcck.. pa^. 70.
^ Roger Bacon, Opus majus, Londres, lyjS, foi. 81. —
Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Entdeck., pag. 69.
VASCO DA GAMA 12 1
javam aos seus predecessores % e ignoravam que
este vasto continente se prolongava coarctando-
se para a parte meridional e ia terminar n^um
cabo situado ao sul do equador.
O século xiii é o tempo das grandes encyclo-
pedias, onde os sábios compendiavam tudo
quanto na Europa era sabido acerca da natureza
e da humanidade. São conhecidos e apreciados
como valiosos monumentos, em que se vêem re-
gistrados todos os conhecimentos n'aquella edade
estudiosa, o Speculum, de Vicente de Beauvais,
ou Bellovacense, o livro De rerwn natura, de
Thomás Cantipratense, discípulo de Alberto Ma-
gno. A geographia africana não adianta porém
um único passo pelos trabalhos d''aquelles eru-
ditos escriptores, que se adstringem a compi-
lar a sciencia dos antigos em vez de illustrarem
a sciencia da natureza com os lumes da própria
investigação. No século xiv o cardeal Pedro d'Ail-
ly, mais conhecido pelo nome alatinado de Pe-
trus Alliacus, na sua Imago mimdi, apesar do
I Vise. de Santarém, Recherchcs sur la dccourertc,
etc, introd., pag. l i.iii c i.v-i,vi.
Í2!2 VARÕES ILLUSTRES
cognome que lhe deram os seus contemporâ-
neos, appellidando-o a águia dos doutores,
ainda suppunha que a região ao sul do monte
Atlas era inhabitavel por causa do extremo ar-
dor ^
Seguindo uma doutrina absurda auctorisada
pelo philosopho Séneca, julgava o cardeal em-
preza fácil e expedita o navegar em poucos dias
desde a costa occidental da península hispânica
até ás índias orientaes, porque, em seu parecer,
apenas mediava entre uma e outra região um
breve espaço do Atlântico 2.
Os progressos experimentaes, que vieram de
algum modo enriquecer durante a edade média
a geographia, são devidos por uma parte aos
viajantes europeus, que por terra peregrinaram
até paragens remotas do Oriente, e por outra
parte aos geographos musulmanos^ entre os
quaes tiveram logar distincto os árabes da Hes-
panha.
1 Vise. de Santarém, Rccherchcs sur lá decouverte,
etc, pag. 107.
2 Vise. de Santarém, Recherches sur la decouverte,
etc, pag. 289.
VASCO DA GAMA 123
O grande numero de viajantes, que ou envia-
dos em embaixada a potentados orientaes, ou
apenas estimulados da própria curiosidade, ha-
viam visitado e percorrido a Ásia, alguns d''el-
les até os últimos confins, attestam que desejos
fervorosos de aventuras e de viagens para alem
dos estreitos limites europeus, incitavam a chris-
tandade nos tempos que decorrem desde princi-
pios do XIII até ao xv século. Toda esta corrente
se dirigia em terrestres peregrinações á Ásia
oriental. Com ellas se accrescentava e corrigia
n'alguns pontos a geographia asiática. Os fru-
ctos, porém, que a sciencia e os monumentos
cartographicos podiam colher d''estas viagens
durante a edade média, eram na máxima parte
desaproveitados. Os cartographos, pela difi-
culdade do commercio litterario e scientiíico,
ou ignoravam os descobrimentos consignados
nas relações dos viajantes, ou, conhecendo-os,
os desdenhavam por fabulosos e continuavam a
ater-se com religiosa observância e idolatria ás
idéas geographicas da veneranda antiguidade,
como se Marco Polo, ou Odorico de Perdonone,
que viram com seus olhos a verdadeira China,
merecessem menos fé que Ptoíemeu, que ape-
nas rastreara vagamente os seres e os sinas do
124 VARÕES ILLUSTRES
ultimo Orientei A crença fanática, cega, obsti-
nada no geographo alexandrino continuou a do-
minar os espíritos por toda a edade média e ainda
alem da sua terminação^. Mas os grandes pro-
blemas, que a antiguidade havia posto e dei-
xado sem plausível solução acerca da Africa,
da communicaçáo dos dois mares Indico e Oc-
cidental, e da verdadeira forma da península
africana, em nada haviam adiantado com as
longas e penosas deambulações de Marco
Polo, de Gonti, ou Mandeville. A geographia
da Libya continuava a ter por fontes princi-
paes os textos dos geographos antigos, a con-
jectura ou a phantasia dos sábios e dos car-
tographos. A sciencia do globo terrestre, exce-
ptuada a Europa, uma parte da Ásia, e as re-
giões africanas septentrionaes, era um. ponto de
interrogação, a que ninguém podéra substituir
uma doutrina exacta e verdadeira.
I Vise. de Santarém, Hist. de la Cosin. ei de la Car-
togr., III, introd., pag. xiii. Ibid., ii, pag. ui.
■-i Peschcl, Geseh. der Erdk., pag. 23. Segundo o illus-
tre geographo allemáo, ainda em 1822 Mannert affirmava
que o lago Tsad devia ter-se formado modernamente,
porque não apparecia notado em Ptolemcu.
VASCO DA (íAMA 12D
Se OS escriptores e viajantes até princípios do
século XIV nada tinham illuminado a geographia
pelo que respeita á peninsula africana, os carto-
graphos mais illustres da edade média a deixaram
egualmente ignorada ou obscura. Â mais notável
das cartas desenhadas durante aquelles tempos é
a de i320, de Marino Sanuto, ou Sanudo, como
pretendem que se escreva correctamente o nome
do celebre veneziano ^ Adoptou este cartogra-
pho a opinião de que os dois mares Indico e
Atlântico tinham entre si communicação, e n''este
presupposto apparece no mappa-mundi a Africa
já circumdada pelo mar, sem comtudo apresen-
tar a sua figura verdadeira, mas só delineada
segundo as noções incorrectas dos antigos e dos
árabes-. A forma do continente, ainda na má-
xima parte desconhecido, não tem n''este planis-
pherio outra similhança com a sua verdadeira
configuração senão a de constituir uma penínsu-
la, limitada pelo Atlântico e o mar das índias.
Em vez de uma ponta situada ao meio-dia,
• Vivien de Saint-Martin, Hist. de la s^éogr., pag. 291.
^ "Aus arabischen Karten hat Sanuto scin Bild von
Africa entlehnt.»* Peschcl, Gesch. der Erdk.. pat;. 192.
1 20 VARÕES tLLtJStRES
muito alem do equador, o litoral da Africa, se-
gundo o cosmographo veneziano, vae-se encur-
vando para o Oriente até que, acercando-se ás
regiões, que elle chama índia magna e Jinis
Indiae, transforma o oceano Oriental ou Indico
n^um mar mediterrâneo ^ A forma errónea e pu-
ramente conjectural, attribuida á península afri-
cana por Marino Sanudo, reproduz-se nas car-
tas subsequentes durante o xv século, na de
Andrea Bianco, de 1436, e no próprio globo
de Nuremberg, construído pelo celebre cosmo-
grapho Martim Behaim, ou de Bohemia, como
nossos chronistas o appellidaram^. As cartas da
edade média, ainda mesmo as do xv século,
persistem tenacíssimas em attribuir á Africa a
figura, que os antigos lhe assignaram. Em to-
das, logo á saída do estreito de Gibraltar, a
costa africana vae discorrendo para leste n^uma
linha, senão recta, pelo menos de mui escassa
curvatura, e em muitos casos se prolonga na
mesma direcção até um meridiano, que passa
pela índia. Em nenhum monumento cartogra-
1 Peschel, Gesch. der Erdk., pag. 192. — Vise. de Santa-
rém, Hist. de la Cosm. et de la Cartogr., iii, pag. 209.
2 Peschel, Gesch. der Erdk., pag. 192.
VASCO bA òâmA 127
phico a península africana se projecta alem do
decimo grau de latitude meridional . A região
correspondente á costa de Guiné é ainda n''estas
cartas injustamente condemnada como «região
inhabitavel por causa do calor-». Em outros
monumentos cartographicos de mais antiga data,
se manifesta ser acceita a seus auctores a mesma
opinião de que a Africa não avançava para o
sul, indo terminar em promontório. No celebra-
do mappa-mundi do xiii século, na cathedral
de Hereford, apparece figurada a costa de Afri-
ca de maneira que, a partir das columnas de
Hercules ou do estreito de Gibraltar, se vae
inclinando mais e mais para o oriente, até ir
entestar com o Mar Vermelho. Todo o negro
continente, na concepção errónea do cartogra-
pho, está comprehendido no hemispherio bo-
real, áquem do equador^. Ainda em vários
monumentos cartographicos do xv século, se
1 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de Ia Car-
logr., 111, introd., pag. l-li.
2 Vise. de Santarém, Recherches siir la dècouverte,
cte., pag. 90.
^ Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de /j ('.v-
128 VAKÒíiS ILLUSTRES
nos depara a mais completa ignorância acerca
da figura verdadeira da península africana. Os
cartographos continuam a jurar nos dictames
da antiguidade, havidos por irrecusáveis e sa-
grados. Assim no mappa do museu Borgia, a
Africa, a partir do estreito de Gibraltar, vae
rapidamente inclinando para leste, obedecendo
á hypothese gratuita dos geographos greco-ro-
manos^ Na carta dos irmãos Pizzigani, na ce-
lebrada carta catalã de iSyò^, na das Chroni-
cas de S. Dinii, de iSôy, desenhada em tempos
do rei de França Carlos V, o sábio, na dePinelli,
pelos fins do século xiv, em todas o litoral afri-
cano é apenas traçado como indicando que so-
mente conheciam seus auctores a costa situada
até ao cabo Bojador^. Egualmente ignorantes do
que decorre alem doeste famoso promontório, se
mostram os monumentos cartographicos do se-
1 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., III, pag. 287.
2 Vise. de Santarém, Recherches sur la découverte,
etc, pag. 92-93. — Vivien de Saint-Martin, Hist. de la
géogr., pag. 291.
3 Vise. de Santarém, Recherches sur la dccintvertc,
etc., pag. 91-96.
VASCO DA GAMA I29
culo XV, anteriores aos immortaes descobrimen-
tos portugaezes. Taes são o mappa-mundi no
manuscripto de Pomponio Mela, da bibliotheca
de Rheims, de 1417, a carta de 1424, da livra-
ria de Weimar, e varias outras % que pelo seu
discreto silencio a respeito da geographia afri-
cana, estão como que tacitamente declarando
que o primeiro descobridor dos mais recôndi-
tos segredos geographicos em relação ás terras
africanas foi o pequeno, mas heróico Portugal.
I Vise. de Santarcm, Recherches siir la décoiiverte,
ctc, pag. 96-98.
CAPITULO X
A GEOGRAPHIA DOS ÁRABES
Na epocha florescente do império
dos khalifas a sciencia geographica dos
árabes abrange todo o antigo mundo.
RiTTER, Hist. da geogí-, e dos des-
cobr., pag. i63.
Durante a edade média a Europa christá de-
veu o conhecimento de muitos dos antigos es-
criptores e as noticias, com que no tocante á geo-
graphia as additou e corrigiu, á luminosa cultura
intellectual dos árabes, principalmente aos das
Hespanhas. «Nenhum povo (no dizer do geogra-
pho allemão Peschel) esteve nunca mais que os
árabes em condição favorável e propicia á in-
vestigação e conhecimento do antigo mundo. Ex-
tendiam a sua dominação desde as Hespanhas
ate o Indo e a Syr Darja; desde o Cáucaso ás
terras africanas habitadas pelos negros. Sempre
as guerras e conquistas promoveram a geogra-
l32 VARÕES ILLIJSTRES
phia. . . o idioma do alcorão, como o latim da lin-
guagem ecclesiastica, facilitava a qualquer árabe
o accesso a todos os paizes, onde o Islam...
florescia. Nos árabes se nos deparam os maio-
res viajantes, que em qualquer tempo hajam
percorrido o globo em terrestres peregrinações,
e entre elles o viajante Ben Batuta, que só á
sua parte andou maior espaço que o das ex-
cursões de Barth e Marco Polo, tomadas junta-
mente ' » .
Varias circumstancias contribuíam etficazmen-
te para que os árabes, mais do que nenhum ou-
tro povo conquistador, ampliassem e enriqueces-
sem a geographia, inscrevendo nos seus quadros
muitas e apartadas regiões, ignotas aos antigos
ou por elles apenas suspeitadas. Nenhum povo
dominador levou a maior grau de fanatismo o
furor religioso e o desejo impaciente de con-
verter á sua lei todas as gentes do universo.
A espada é nas mãos dos muslimcs o terrível
instrumento de uma fé intolerante e exclusi-
i Peschel, Gesch. der Erdk., pag. 'j4-y3. — Cf. Cari
Ritter, GcscJt. der ErdJ:. imd der Entdeck.. pag. ly*).
VASCO DA GAMA 100
va. Nos tempos de mais viçosa florescência do
império musulmano, o dominio e a sciencia
geographica dos árabes comprehendia todo o
mundo antigo, desde a China, no ultimo Oriente,
passando pela Ásia, até os extremos confins da
Europa occidental, nas terras lusitanicas, e toda
a Africa septentrional até o rio Niger^ Os mu-
sulmanos, a quem injustamente apodava a chris-
tandade por incultos, quasi bárbaros, foram na
edade média, em grande parte, os mestres dos
grandes sábios europeus. Foram elles, que in-
terpostos, por assim dizer, á antiguidade e aos
tempos medievos, serviram de canal, por onde a
antiga sciencia fluiu e se espalhou entre os chris-
tãos do Occidente. As grandes cidades, onde se
manifestava mais brilhante a vida musulmana,
eram focos, d'onde brotava a jorros a luz da
sciencia e litteratura. Bagdad, a corte dos kha-
lifas, reproduzia sob um novo aspecto a fe-
cunda civilisação, quasi mil annos antes concen-
trada na pensadora Alexandria. Shiraz, na Pér-
sia, Bassrah, Kufa, Damasco, seguindo os exem-
plos, que lhes estava ministrando a metrópole
Rittcr, Gesdi. der Erdk. imd der Entdeck., pag. lõj.
12
l34 VARÕES ILLUSTRES
do khalifado, abriam as suas escolas á curiosi-
dade e ao saber dos crentes no alcorão ^ A obra
clássica e oracular da astronomia, a Sfntaxis
mégalè, de Ptolemeu, ou át Batolema, na recen-
são arábiga 2, foi por elles traduzida e divulgada
sob o nome de Almagesto. A Geograpliia, do
mesmo sábio alexandrmo, appareceu também na
versão árabe. A erudição e o saber dos sectários
de Mahomet diffundiu-se pela Europa a favor da
conquista musulmana das Hespanhas, que veiu
a ser como que um élo fecundo e necessário na
historia da civilisação occidental. Eram celebra-
das na edade média, sob a dynastia dos Ommia-
das, as escolas de Córdova e de Sevilha. «Quando
no resto da Europa (diz o illustre escriptor alle-
mão Schacki, auctor da obra intitulada Poesia e
arte dos árabes na Hespanha e na Sicília) nas
trevas da mais profunda ignorância, apenas as-
somava a primeira claridade da sciencia, na
Hespanha se aprendia, e ensinava, e inquiria
zelosamente em toda a parte». Muitos dos
ehristãos, que anhelavam por instruir-se, acu-
diam áquellas metrópoles do saber e iam pela
i Ritter, Gesch. der Erdk. iind der Enideck., pdy. 104.
2 Ritter, Gesch. der Erdk, iind der Entdeck.j pag 180.
VASCO DA GAMA l35
Europa reflectir a luz, que estavam chispeando
as escolas musulmanas. Não admira pois que
fossem entáo árabes e muitos d^elles árabes
hispânicos 'ósgeographos de mais illustre no-
meada. Entre todos sem emulo tem Edrisi no
XII século o principado. São ainda hoje memo-
rados os nomes e apreciados os escriptos de
muitos outros illustres mahometanos. Os mais
notáveis e importantes livros acerca da geo-
graphia durante a edade média íáãó' escriptos
em lingua arábiga e têem por seus auctores a
muitos sábios, cuja fama transcendeu os limites
do mundo musulmano^
Em princípios do século x, figura como apre-
ciável escriptor de assumptos geographicos, o
persa Al-Istakhari, No meado d'aquelle sécu-
lo apparece Masudi, cuja grande obra enciclo-
pédica, sob o titulo de Prados de oiro e minas
de pedras preciosas, Gari Ritter compara na
extensão e na copia de noticias á Historia naiu-
ral de Plínio entre os romanos-.
I Ritter, Gcsch. der Erdk. imd der Entdeck., pag. 179.
3 Ritter, Gesch. der Erdk. iind der Entdeck., pag. 179.
l36 VARÕES ILLUSTRES
No XI século tem a geographia por seus prin-
cipaes representantes entre os árabes a Bekri
e Abiruni. No século x-ií lAbujAbdallah-Mahom-
med Ibn Mohammed, natural de Ceuta, conhe-
cido geralmente pelo nome unívoco de Edrisi, e
também citado muitas vezes como o geogra-
pJio nubiensCy eclipsa a fama dos seus anteces-
sores e contemporâneos.
A sua obra Noihat el Moschtac, ou na ver-
são latina, Oblectamenttim Cupidi, é preciosa
por suas noticias verdadeiras, entretecidas de
lendas maravilhosas e de fabulas pueris.
No século XIII resplandecem como de geogra-
phos notáveis os nomes de Kazwini^ de lakut-,
de Ibn Al Wardi, e entre todos os seus contem-
porâneos alcança a primazia o celebrado Abulfeda
da raça principesca dos Eyubidas, e soberano
de Hamah, na Syria-\ Abulfeda é a contar de
1 A sua obra com o titulo de Cosmographia appareceu
vertida em allemão, KaswinVs Kosmographie nach der
WustenfeWschen Textausgabe, por H. Ethe, Leipzig, 1869.
2 lakufs geographisches Worterbuch, herausgegeben
von F. Wustenfeld, Leipzig, 1866 (Diccionario geogr. de
lakut, publicado por Wustenfeld).
? Ritter, Gesch. der Erdk. imd der Kntdeck., pag. 184.
VASCO DA GAMA 1 O 7
Edrisi, como elle também de stirpe regia, o se-
gundo entre os grandes geographos arábigos. A
sua notável obra geographica, Tj^í^m alBoldan,
que na versão latina tem o titulo de Líber ca-
nonis terrarum\ é uma das que mais tem
modernamente exercitado o acume litterario
dos historiadores da geographia arábiga duran-
te a edade média 2. Se estes geographos porém
coUigiram e estudaram o que os escriptores da
antiguidade haviam enunciado e serviram a di-
vulgal-o pela Europa, todavia são escassos os
progressos, que na parte relativa á Africa cen-
tral e Occidental, e ás navegações no Atlântico
lhes deveu a geographia experimental e scienti-
fica^. O termo das mais ousadas navegações
dos árabes ao longo da costa occidental de
Africa, no tempo de Edrisi (xii século) era si-
tuado a quatro dias de viagem alem de Saíi no
1 Liber canonis terrarum, aiicto rerege forti príncipe
Hamah, versão de Reiske.
2 Ê havida como clássica a versão franceza da geogra-
phia de Abulféda de Reinaud, com a magnifica e eru-
dita introducçáo, em que se exphmam muitos pontos da
geographia entre os árabes. Paris, i838.
3 Vivien de Saint-Martin, HLst. de la i^éoí^r., pag.
•261-263.
l38 VAr6eS iLLtJSTRES
litoral 'dó império marroquino ^ Nos tempos,
em que Ibn Khaldun escreveu (1377 da nossa
chronologia) as viagens mais extensas dos mus-
limes ao longo das costas africanas occidentaes
ficavam sempre áquem do cabo Náo^. Para
Edrisi-''ô >^r tenebroso é aquelle alem do qual
ninguém sabe ainda o que existe^. Um hemis-
pherio inteiro do nosso planeta está envolto
pelas aguas4. O Oceano ao occidente e ao melo-
dia é, no dizer de Edrisi, innavegavel pelas
trevas profundas, que o escurecem, pela gran-
de elevação das suas vagas, tão altas como ser-
ranias, pela fúria dos ventos, pela frequência
das borrascas, pela multidão dos monstros ma-
t J. J. da Costa Macedo, Memoria em que se pretende
provar que os árabes não conheceram as Canárias antes
dos portugueses, nas Mem. da acad. real das sciencias,
nova serie, tom. 11, part. 11, pag. 87. — Peschel, Gesch. der
Erdk., pag. 11 8- 119.
2 Vise. de Santarém, Recherches sur la découverte,
ctc, pag. 102. — Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Entdeck.,
pag. 41.
3 Vise. de Santarém, Recherches sur la découverte,
etc., pag. 99.
4 Vise. de Santarém, Recherches sur la découverte,
etc., introd., pag. xxxviii-xxxix.
VASCO DA GAMA 1 3g
^inos^ O que os árabes e os seus geographos
conhecem da Africa é principalmente as regiões
interiores pelas jornadas e excursões, a que em
suas caravanas se aventuravam partindo da
Barbaria. Já nos fins do século xii da era chris-
tã o islamismo era a crença dominante no
Bornu, e em princípios do século xiii estendia
as suas conquistas até ao grande reino de Melli,
no alto Niger^. A religião mahometana chegava
no mesmo século até o Darfur e o Uadai^. Os
árabes atravessando desde Marrocos o interior
da Africa até o Sudan chegavam a Taghaza e
encontravam em Walata a primeira grande po-
voação dos negros 4.
Ao árabe Masudi, no século x, eram desco-
nhecidas as regiões banhadas pelo Atlântico nas
próprias cercanias do estreito de Gibraltar 5.
1 Vise. de Santarém, Rechefches sur la découvertej
ctc, introd., pag. xl. — Edrisi., trad. de Jaubert, pag. 2.
2 Peschel, Gesch. der Erdk., pag. ii3. — Barth, Nord-
iind Centralafrika, 11, pag. 809, iv, pag. 417, 60 3 e 609.
3 Peschel, Gesch. der Erdk., pag. 114.
4 Peschel, Gesch. der Erdk., pag. 1 15.
5 Macedo, Memoria em que se pretende provar^ etc.
pag. 74-75.
14o VARÕES ILLUSTRES
Alem doeste limite, nõ conceito do geographo
arábigo, ninguém pôde navegar. É interdicta
aos mareantes a passagem desde o mar Medi-
terrâneo ao Atlântico, até onde não constava
que um só baixel houvesse ainda cursado. O
Oceano c, na phrase de Masudi, o mar da es-
curidão, também chamado por outros nomes o
mar circumdante e o mar verdeK A noção admit-
tida por Ibn-Al-Wardi é expressa n'estas pala-
vras: «Pelo que pertence á terra occidental, a
sua parte exterior é banhada pelo Oceano ou
mar muito tenebroso, em que ninguém mais
navega, nem se conhece o que alem d^elle ha^».
Segundo Ibn Khaldun, o Atlântico tornava-se
intractavel aos navegantes pelos perigos teme-
rosos, que oíferecia, e pelos vapores, que se le-
vantavam continuamente acim i das suas aguas ■^.
' Historical Encyclopívdia entitlcd Mcadows ofGold and
Mines o/íjfejns, translated from the arabic by Aloys Sprcn-
f^er, cit. em Macedo, Mem. em que se pretende provar, etc,
nas Mejn. da Acad. real das sciencias de Lisboa, tom. i,
part. II, pag. yS.
2 Macedo, Memoria em que se pretende provar, eic,
nas Mem. da Acad. real das sciencias de Lisboa.
-' Pcschel, Gesch. desZcitalí. der Entdeck., pag. 41-42.—
Reinaud, Aboulfèda^ i, paj;. 265.
VASCO DA GAMA I41
O antigo erro, professado por Aristóteles, e
canonisado por Ptolemeu, de que era inhabita-
vel a zona tórrida, encontra nos geographos ará-
bigos durante a edade média devotados seguido-
res. Edrisi, apesar de conhecer as estações ma-
ritimas dos árabes na costa oriental de Africa,
a 20° de latitude meridional, consagra tão faná-
tica veneração ao grande mestre alexandrino, que
declara com elle inhabitaveis as regiões intertro-
picaes^
As cartas geographicas dos árabes, seguindo
o erro de Hipparcho, transmittido por Ptole-
meu, desfiguram o continente da Africa, en-
curvando de tal modo para o oriente a ponta
meridional, que o cabo da Boa Esperança vem
a formar um estreito com a peninsula de Mala-
ca 2. A carta de Edrisi é uma cabal demonstra-
ção de que os cartographos arábigos não faziam
clara idéa da forma do continente africano, nem
suspeitavam a verdadeira situação do seu ex-
tremo austral^
I Edrisi, irad. Jaubert, i, pag. 2. — Peschel, Gesclu
des Zeitalt. der EntdecU., pag. 69.
- Peschel, Gesch. der Zeitalt. der Entdeck., pag. 75.
■^ Peschel, Gesch. der\Erdk.. pag. t32-i33.
143 VARÕES IIJ-USTRES
Nos geographos arábigos até o xiv século
nada podia pois deparar-se de proveitoso a quem
desejasse conhecer as terras, que demoravam no
litoral africano alem das columnas de Hercules,
desde tempos antigos reputadas como término
impreterível das mais audazes navegações.
Sobre qual fosse a influencia dos geographos
arábigos na cosmographia e nos trabalhos dos
cartographos christãos na edade média, são
vários os pareceres entre os modernos historia-
dores da geographia. Alguns, e entre elles um
portuguez eruditíssimo, assentam que é somente
pelos fins do xiv século que nos monumentos
cartographicos começa a revelar-se o influxo dos
geographos musulmanos, principalmente no que
respeita aos logares e aos nomes africanos e
que nos tempos antecedentes fora insensível ou
apenas manifestado por vestigios duvidosos ^
1 «A partir de la íin du xiv siècle se fait sentir déjà
rinfluence positive des géographes árabes sur les carto-
graphes occidentaux. Avant cette époque, cette influence
était nulle et s'il s'en reconnait quelque faible índice,
c'est une trace encore fort incertaine . . . Mais Tinfluence
árabe se manifeste plus que partout ailleurs dans les le-
gendes et'dans les noms de TAfrique.» Vise. de Santarém,
VASCO DA GAMA I40
Contraria opinião é professada pelo geographo
aliemáo Oscar Peschel, segundo o qual durante
a edade média náo somente as cartas manifes-
tam um progresso na sciencia, senão também
a eftectiva inspiração dos geographos arábi-
gos '.
'rfqBT^omgO
Hist. de la Cosm. et de la Cartogr., iir, introd., pag. xvi-
XVII. Ibid., xxiv. ' "" ■'
I «Entdecken wir auf den gleichzeitigen Landkarten
erwciterte Kenntnisse, aber auch deutlich den Einfluss
der arabischen Vorstellungen.» Peschel, Gesch. der Erdk.,
pag. 169. O geographo allemão na Historia da epocha dos
descobrimentos, publicada em i858, sete annos antes de ap-
parecer á luz a sua Historia da geographia, professava
contraria opinião, suppondo que nenhum indicio se des-
cobre de que os sábios latinos, oti christãos do Occidente,
aproveitassem as obras geographícas e os diários de notá-
veis viajantes musulmanos. «Nirgends aberíindet sich, dass
die lateinischen Gelehrten die wichtigen geographischen
Werke der Araber odcr die Journale ihrer grossen Rei-
senden benutzte hattcn.'> Peschel, Gesch, des Zeitalt. der
Entdeck., pag. 121.
CAPITULO XI
AS LENDAS GEOGRAPHICAS DA EDADE MEDIA
Les cartograplies de la fin mêmc
diimoyen âge maintieiínent dans leurs
cartes les fables de leurs devanciers.
Vise. DE Samarem, Hist. de la
(losm.etdc la Cartop:, m, pag. x\i.
Na cartographia da edade média estão repre-
sentadas n''um syncretismo singular as noções
dos antigos mal interpretados e entendidos, os
elementos geographicos da Biblia e dos santos
padres e doutores'. Para completar a confu-
sa e phantastica figuração do orbe terrestre
conspiram todos os m3^thos e lendas geographi-
cas, as quaes inspiradas pela mystica imagina-
ção constituíam um fundo de crença popular e
respondiam cabalmente a esta necessidade insa-
^ Vise. de Santarém, Hisl. da la Cosiii. el de la Car
togr., II, pag. 7.o5.
i3
146 VARÕES ILLUSTRES
ciavel de maravilhas e prodígios, que especial-
mente caracterisa aquelles tempos nebulosos.
A zona tórrida é quasi sempre designada
como região inhabitavel nos monumentos carto-
graphicos^ Nos mappas se põe de manifesto
que os seus debuxadores, em tudo o concernen-
te á geographia de Africa, haviam quasi todos
retrocedido aos tempos anteriores aos geogra-
phos illustres da sabia antiguidade-. As para-
gens, de que apenas havia obscuras informa-
ções, por falta de navegadores ou viajantes, que
as tivessem explorado, appareciam nas cartas
como regiões povoadas de monstros singula-
res. No mappa-mundi-^ da bibliotheca de Dijon,
do século xni, no logar destinado á zona tór-
rida, está inscripta uma legenda, que alem de
outras noções extravagantes, coi^sagra a opinião
de que o mar ali parece estar em ebullição-^.
1 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosni. et de la Car-
togr.. Paris, i85o, i, introd., pag. xxix.
2 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosni. et de la Cav-
togr., introd., pag. xxxix-xl.
3 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosni. et de la Car-
to gr., introd., pag. xliii.
I «EbuUitiones maris íieri videntur.» Vise. de Santa-
rém, Hist. de la Cosm. et de la Carto^j^r., 11, 91:
VASCO DA GAMA 147
Era o Oceano figurado n^alguns d^aquelles
monumentos como uma faxa ou cinta, que em
todo o circuito do equador apartava uma da
outra as zonas temperadas e as fazia de todo
o ponto incommunicaveis'. A ignorância das
faunas peculiares a cada região das que eram
vagamente suspeitadas ou imperfeitamente co-
nhecidas, era supprida por um mundo de phan-
tasticos e fabulosos animaes, de que a antigui-
dade ou a edade média povoara a sua maravi-
lhosa e poética zoologia^. Eram os faunos e os
satyros poetados pelos antigos. Era esta ave
mysteriosa e admirável, a clássica Phenix, que
ninguém podéra nunca descortinar, de que po-
rém se acreditavam firmemente as prodigiosas
resurreições. Era o basilisco temeroso, cujos
olhos eram lethaes, quando n'alguem acertava
de os fitar, e de cujas maravilhas o crendeiro
Plinio faz memoria na sua vasta encyclopedia^.
Era a sphynge egypcia tão litteralmente acceita
1 Vise. de Snntarem, Hist. de la Cosm. et de la Car-
tof^r., introd., pag xi.iv.
2 Vise de Santarém, Hist. de la Cosvi. et de la Car-
tof^r., II, introd., pag. lvi.
-^ Plinio, Hist. uat.f liv. xxix, cap. iv, e liv. 11, cap. xxi.
148 VARÕES ILLUSTRES
por existente, como o podem agora ser em
nossos dias os paradoxaes, mas verdadeiros or-
ganismos da fauna australiana ^ Eram os gry-
phos, a quem o próprio naturalista romano ta-
xara de fabulosos 2.
Antes dos descobrimentos portuguezes a car-
tographia não somente peccava por ser inexa-
cta e rude em suas delineações, senão que em
seus monumentos acolhia e abrigava quantas
noções absurdas, quantas fabulas risiveis, quan-
tos mythos maravilhosos legara a antiguidade,
c a simpleza pueril da edade média admittíra
como sciencia incontestável. É singular a anthro-
pologia, segundo nas cartas e mappa-mundis
medievos se contém. N''alguns d'elles, como
no mappa-mundi do Polychronicon de Ranul-
pho Hygden, no museu britannico, figuram
uns povos hermaphroditas com um seio de
homem, e outro de mulher, taes como os des-
crevera a credulidade fácil de Plinio, o na-
turalista^. Ali se notam em certas regiões uns
1 Plínio, Hist. nat.^ liv. 11, cap. xxi.
2 Plinio, Hist. nat., liv. 11, cap. xxx.
3 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
iogr.y III, pag. 25.
VASCO DA GAMA I49
homens, que têm em cinco annos a maior du-
ração da sua vida, outros, a quem a natureza
por uma ironia extravagante adorna de cans a
juventude e de cabellos negros a velhice ^ Ali fi-
guram uns homens extraordinários, que têm
olhos nos hombros e no pescoço 2. Outros appa-
recem táo singulares e monstruosos, que têm
no peito a bocca e a cabeça^. Em outra região
habitam os homens, a quem privou de lingua a
natureza 4. Mais alem o cartographo nota com
escrúpulo as terras onde moram os pygmeus c
os cyclopes^ e os famosos gymnosophistas, que
podem contemplar o sol de fito em fito^. Segun-
do a phantasia do cartographo, as amazonas,
1 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., iií, pag. 26.
2 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., III, pag. 22.
-^ Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car'
togr., III, pag. 42.
4 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., III, pag. 43.
5 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., III, pag. 26.
'^ Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., III, pag. 27.
1 5o VARÕES* ILLUSTRES
que fabulou a antiguidade, existiam realmente
a leste do rio Don ou Tanais dos antigos'. Na
Albânia figuravam os debuxadores do mappa-
mundi a uns homens, que vêem o sol durante a
noite^. Na carta geographica da cathedral de
Hereford, em Inglaterra, um dos mais celebra-
dos monumentos cartographicos da edade média,
assignala-se o logar, aonde habitam uns povos
sem orelhas, aos quaes o cartographo attribuiu
o nome de Ambari, e outras gentes de mais sin-
gular e monstruosa constructura, os Sccnopodes,
que têm apenas uma perna, e os Monóculos,
que têm somente um olho, á guisa de cyclo-
pes^. No mesmo mappa-mundi se deparam os
Androgynos e Himantopodes'^^ os Blemmyes,
que por serem desprovidos de cabeça têm a
bocca situada sobre o peito, ou nos hombros a
í Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car
togr., III, pag. 29.
2 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car
togr., III, pag. 3o.
3 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., II, pag. 393.
4 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., II, pag. 394.
VASCO DA GAMA l5l
bocca e os olhos juntamente ^ Outros povos
ainda mais teratologicos, os Parvini, se distin-
guem por terem quatro olhos 2. Uns homens de
cómica e notável monstruosidade têm os lábios
de tão larga extensão e mobilidade, que com
elles se recatam e defendem contra o soP.
Até o fim da edade média, já quando a
sciencia principia a desterrar dos domínios da
natureza as creações da imaginação, se com-
prazem os cartographos em attribuir um logar
de honra em suas cartas ás mais desvairadas e
absurdas phantasias. As sereias mythologicas
não desamparam ali o seu posto immemorial e
os homens monstruosos continuam a figurar em
diversas regiões, mal conhecidas ou ignotas, c
a dar á anthropologia poética a sancção da sua
auctoridade4. Os fabulosos povos hyperboreos
figuram n'algumas cartas, entre outras na de
1 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., II, pag.SgS.
2 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., II, pag. 3(,5.
3 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., II, pag. 404.
4 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
iogr.j III, introd., pag. xxi.
ID2 VARUlíS ILLLSTRKS
Henrique de Moguncia, do xii século', no mappa
de Ranulpho Hygden, do xiv século, no mu-
seu britannico^. No mappa-mundi do museu Bor-
gia, traçado já no xv século, ainda se consignam
como verdades geographicas as fabulas e ficções
que sonhara a antiguidade a respeito dos povos,
hyperboreos. Dá sua região são habitantes egual-
mente os gryphos e os tigres^. As gentes her-
maphroditas constituem um povo especial na
carta de Ranulpho Hygden^. No mappa do
museu Borgia apparece figurada na Africa, a'
região, onde mulheres hirsutas ^e feroci^sima^
são fecundas por simples parthenogenesis ou
sem necessitarem de maridos ^ Os cynocephalos
ou homens com cabeça de cão, são também
uma das ficções predilectas dos cartosraphos
1 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., III, pag. 474.
2 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., III, pag. 54.
3 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., III, pag. 266-267.
4 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., III, pag. 2 5.
5 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., III, pag. 294.
VASCO DA GAMA IDO
durante a edade media e apparecem habitando
varias regiões segundo a phaiitasia dós que in-
ventam e debuxani os monumentos cartographi-
cos'. Estes homens singulares e fabulosos ainda
encontram representação no celebrado mappa-
mundi de Andrea Bianco, de i4362.'
Às ficções meio religiosas, meio poéticas do
antigo paganismo, ou do mysticismo çhristão,
disputavam nos tratados e nos mappàs |;eogrà-
phicosda edade média um logar de honra as
noções positivas acerca do nosso globo e com
ellas conviviam sem que fosse mui fácil distin-
guir onde terminava o mundo da phantasia
para começar a terra conhecida por segura e
indubitaveí inspecção. Eram varias as lendas
geograpHicas, de que se repastava o espirito
poético ou religioso dos cartographos christãos
e dos geographos muslimes ou arábigos durante
a edade média.
Era a primeira e mais antiga um reflexo das
crenças gentílicas, exornada de formosas am-
1 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la (!ar-
tof^r., III.
2 Vise. de Santarém, Hist. de la Cnstu. et de la dar-
/o «•;•., III, pag. 3<)l.
54 VARÕES ILLUSTRES
plificações pelos poetas gregos e romanos. Era
a fabula de um Elysmm, de uma terra de inef-
favel e eterna bemaventurança, onde os justos
haveriam de receber a palma e galardão da
vida immaculada. Era aquella região afortuna-
da, que segundo a descripção consignada na
Odyssca, está situada nos confins da terra,
«onde habita o flavo Rhadamanto; onde é fa-
cillimo aos humanos o viver; onde não ha neve,
nem chuva, nem inverno duradouro, e onde o
Oceano sopra as auras suaves respiradas pelos
zephyros^». A esta ilha dos bemaventurados,
onde os justos iam receber o premio de terem
conservado a alma exempta de peccado, se refe-
riu o grande Utíco Thebano-. «N^ella estão as
Oceanides espirando as auras suavíssimas, e
vecejam resplandecendo as áureas flores.» Esta
deliciosa estancia debuxada nas obras dos poe-
tas, interpretada ao mesmo tempo na sua accc-
1 Odyss., liv. IV, vers. 563 e seg.
2 Pindaro, Olymp., Od. ir, ed. ác 1012, pnq. aS.
1'vOa, ij.a/.ásHv,
A-Jpat 7T3v.7TVí'jo'jr)'.v àv-
VASCO DA GAMA l55
peão theologica e no seu sentido geographico,
deu aso a um problema, que todos os eruditos
c geographos se afadigaram por solver. CoUo-
cava cada um o Elysio ou a terra da bema-
venturança, segundo lh'o dictava a imaginação ^
Todas as sciencias no seu berço, por uma lei
indeclinável do espirito humano, se comprazem
cm abraçar a fabula e a verdade, o natural e
o maravilhoso, a realidade c a licção. Assim a
astronomia, já adulta e opulenta, nem com os
sublimes descobrimentos de João Kepler alcan-
çou desenlaçar-se da astrologia. Os sonhos dos
alchimistas ainda no século xviii, século de
profundo scepticismo e de transcendente espe-
culação na philosophia e nas sciencias, inva-
diam os domínios da chimica moderna. Assim
também as lendas se mesclavam na antigui-
dade e na edade média aos conhecimentos
racionaes ou positivos da confusa geographia.
Fora para os antigos necessária a poética fic-
ção dos Elysios e das ilhas Afortunadas nas ex-
tremas fronteiras do mundo conhecido. Aos espi-
ritos medievos, ainda mais anhelantes de cousas
» Macedo, Memoria cm que se pretende provar, ctc,
pag. 38-45.
lOb VARÕES ILLUSTKHS
maravilhosas e excedentes á ordem habitual da
natureza, acudiram, para enriquecer o thesouro
das suas idéas mysticas na geographia, certas fic-
ções, que se enlaçavam com a que poderiamos
appellidar a mythologia christan. Os hagiogra-
phos occuparam o campo, que devera pertencer
indiviso aos escriptores da cosmographia. O my-
tho dos Elysips christianisou-se na idéa geogra-
phica do paraiso. terreal e das ilhas mysteriosas,
vinculadas ás lendas dos santos na meia edade.
O celebrado viajante Mandeville, á volta das
suas longas excursões, descreve com a pontua-
lidade escrupulosa de quem a tivesse observa-
do, a situação do paraiso. Na carta ou mappa-
mundi ásis Clwojiicas de S. Dinii, vê-se que o
diligente debuxador, mais sollicito de accrescen-
tar de novas fabulas a mythologia christan da eda-
de média, que zeloso de enriquecer de factos cer-
tos a geographia positiva, situou o paraiso ter-
real nos extremos confins do mundo, trasladando
ao monumento cartographico a recente e menti-
rosa narração do gentilhomem inglez'. Uma carta
delineada logo após as revelações maravilhosas
I Vise. de Santarém, Recherchcs sur la dccouvcrtc, etc,
VASCO DA GAMA lÕy
do explorador Chnstovao Colombo, que foi ao
mesmo passo um mystico fervente, um cosmo-
grapho estudioso, e um aventureiro descobri-
dor, não desdenha,' jâ' eni^prená ÍRenascença, de
assignar o preciso logar*, em que ainda existe o
Éden biblico;"'- "'^ '^'^'"'- " "'"'-q^'"'-;
AT ' ' ' LJK'm^05 sb asioífiipgs 20j; osiyi
Mas os canograpnos na eoade media nao at-
testam unicamente a sua escrupulosa exactidão
em marcar e definir a posição da terra bem-
avénturâda . Do miesnío "'modo que os antigos
assignavam de varias maneiras o logar do Ha-
des oii inferno gentílico, assim támbeín 'o infer-
no e o purgatório christão achavam nos mappas
medievos o seu logar. O famigerado purgató-
rio de S. Patrício era relegado para os paízes
boreaes è situado iía ^fslàiiaíàV oncíe o Hecla,
com ásfeâis érup^çÔés, parecia 'ííeseriípehhar na
ordem da natureza a funcçã'o, qúe 'na esphera
espiritual e mystíca pertencia ao fogo eterno'.
A ilha de Salomão, situada no Atlântico e na
qual se dizia achar-se o corpo do rei sapientissi-
mo n\im castello^\íè'"íàDrlc^ írikiràviihos^
outra das fabulas acceitas como realidades geo-
I Vise. de Santarém, Hisi. de la Cosm. et de Ia Car-
togr., II, introd,^ pag. xxiv.
14
58 VARÕES ILLUSTRES
graphicas por alguns dos cosmographos na edade
mediai Entre elles egualmente passava como se
fora de lei e realmente descoberta a ilha de
S. Br andam, táo celebrada nas tradições d''aquel-
les tempos e nos monumentos cartographicos
dos séculos xiv e xv e que ainda apparece fi-
gurada no globo de Nuremberg, cujo auctor foi o
celebre Martin Behaim-.
N^esta ilha singular appareciam como que en-
feixadas as reminiscências mythologicas da anti-
guidade, a noção m3^stica do paraiso terreal e a
lenda hagiographica de um monge irlandez,
S. Brandam"\ Divagando sete annos de ilha em
ilha pelo Atlântico, aportara finalmente o san-
to navegador á terra bemaventurada, que em
uberdade e em delicias egualava o paraiso ter-
real. Esta ilha maravilhosa, de que se nos de-
para breve descripção na Imago mundi, de
Honório d'Autun, e que figura gravemente
como authentica região, Confundida com as
1 Macedo, Memoria cm que se pretende provar, ctc,
2 Peschel, Gesch, dús Zéitall. der Entdeck., pag. 38.
3 Macedo, Memoi^ia cm que se pretende provar, ctc,
pag. 08 e 73.
VASCO DA GAMA iSq
ilhas Afortunadas na carta da cathedral de He-
reford, na dos Pizzigani, de Veneza, de i367, e
na de Andrca Benincasa, atravessa a edade mé-
dia como thema predilecto dos cosmographos,
apesar de que já desde o século xiii a averbara
de fabulosa e indigna de ser mentada em obra
grave, o grande cncyclopedico Vicente de Beau-
vais^
Era também admittida pelos cartographos a
ilha fabulosa das sete cidades, onde segundo a
tradição, no tempo da invasão de Hespanha
pelos árabes, se havia refugiado um bispo do
Porto, levando comsigo grande copia de chris-
tãos com seus gados e haveres. Esta ilha ap-
parece ainda figurada no globo de Nurembcrg,
de Martim Behaim, e na edição de Ptolemeu
de'i6ò7^ A ilha do Paraiso figura n^alguns dos
monumentos cartographicos, entre outros no de
Lam.berto no xii século^.
1 Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Entdeck., pag. Sy-
39. — Vincent.' Bellovacensis, Speciihnn historiale, lib. xxi,
cap. 81.
2 Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Entdech., pag. 129.
3 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., II, pag. 1 58- 159.
l6o VARÕES ILLUSTRES
Nenhumas entre as ilhas fabulosas são porém
mais singulares do que as chamadas pelo geo-
grapho Edrisi a ilha dóshomèksesiitiíadas
mulheres. Suppunha-se "^cáâ^a umií'lí'^éíias habi-
tada exclusivamente por 'individúos do mesmo
sexo. Todos os annos porém os homens vinham
de longe em suas barcas demandar a ilha das
mulheres, que era como se fora o seu commum
harém. E passados breves dias, na folgada con-
vivência das nymphas solitárias, volviam á sua
pátria a passar o resto do anno em desconsola-
da e triste separação'.
Em muitas cartas apparece representado o pa-
raiso terreal com as figuras de Adão e Eva e a
serpente incitadora do peccado original-. A po-
sição do paraiso é comtudo variável. Situavam-
n^o uns, — e esta era a mais seguida opinião, —
nos extremos coníins orientaes da terra habita-
1 Edrisi, trad. de Jaubert, cit. em Macedo, Memoria cm
que se pretende provar, ctc, pag. 84.— Vise. de Santa-
rém, Hist. de la Cosm. et de Ia Cartogr.
2 No mappa-mundi de um commentario do Apocalrpsc
n'iim manuscripto do museu britannico do xii século.
Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Carto f^r.,
II, pag. 107, e no mappa-mundi da bibliotheca de Tu-
rin.
VASCO DA GAMA
vel. Terçavam eíri,J[avor doesta doutrina Honó-
rio d^Autun, Vicente de Beauvais, Roger Bacon,
e o cardeal Pedro d'Ailly na sua Imago miin-
dl. A supposição d'estes cosmographos era se-
guida por grande numero de cartographos, que
em seus mappas desenhavam o paraiso, com
tão plena e sincera consciência, como se a si-
tuação dos seus logares tivera sido determinada
por inspecção ocular e por meio de processos
astronómicos ^ O que é por extremo singular é
que o próprio Christovão Colombo, fanatisado
pelos delirios geographicos da edade média e
principalmente pelas doutrina^, 4^. T*edro de
Ailly, que lhe serviam de fanal, se podesse con-
vencer ao chegar ao golfo de Paria, que ali pró-
ximo devia demorar o paraiso terreal-. Tão do-
minado por erróneas theorias se aventurava a
seus fortuitos descobrimentos o almirante geno-
vez. Gollocavam outros a terra bemaventurada
em regiões geographicamente desconhecidas ou
figuradas ao sabor e phantasia dos cartogra-
• Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Entdeck., pag. 291.
2 Peschel, Gcsdi. des Zeitalt. der Entdeck., pag. 291.
l62 VARÕES ILLUSTRES
phos ^ N^algumas cartas o paraíso é situado
n'umailha2 fora de toda a terra conhecida.
Uma das lendas, que mais curso tiveram entre
os geographos da edade média, foi a das colum-
nas, que estavam erigidas em vários pontos da
superfície terrestre e serviam para indicar aos
navegantes os términos ou limites, alem dos quaes
lhes interdizia a natureza o navegar/ Eram antes
de todas celebradas as columnas de Hercules
ás portas do estreito, que separa do mar inte-
rior ou Mediterrâneo o mar exterior ou» Atlân-
tico. Nos planispherios da edade média é fre-
quente encontrar debuxados estes fabulosos
monumentos-'. A existência de estatuas colos-
saes de pedra ou de metal, que em certas ilhas
do Oceano estavam como que intimando aos
navegantes a tremenda prohibiçáo de passarem
adiante, era outra lenda vulgar entre os geo-
graphos medievos, christãos e musulmanos.
1 Vise. de Santarém, Hist. de la (losm. et de la Car^
tof^r.j, II, pag i6.
2 Vise. de Santarém, Hi\st. de la Cosm. et de la Car-
to fi;}'.^ 11, pag. i83 e i()3.
3 Vise. de Santarém, Hist. de la (Josni. et de la Car-
io gr., i\, pag. 5i.
VASCO DA GAMA l63
Na ilha de Salomão erguiam-se três d''estas
mysteriosas esculpturas. Uma estatua amarclia
extendia uma das mãos, intimando no seu gesto
ao viajante que retrocedesse no caminho. A se-
gunda era verde e parecia interrogar os marean-
tes sobre qual era o ponto, aonde levavam di-
reita a proa. A terceira era negra e apontando
para o mar insondável e tenebroso, parecia pro-
nunciar a sentença capital contra o temerário
navegador, se persistisse em cursar d'ali avan-
te ^ Segundo a obra geographica de Edrisi ha
nas ilhas, que chamam Afortunadas, as Fortu-
natas dos antigos, duas estatuas de pedra de
cem covados de altura, e sobre cada uma d^el-
las uma figura de bronze, que está com a mão
fazendo signal aos navegantes 2. Segundo o geo-
grapho árabe Schems Eddin Mohammed ad-
Dimischki, nas praias do mar circumdante pró-
ximo das ilhas de Saida, três estatuas de
horrível catadura faziam aos navegantes eguaes
1 Macedo, Memoria cm que se pretende provar, etc,
pag. 77. — Vise. de Santarém, Rccherchcs siir la dccoii-
verte, etc, pag. cu.
2 Macedo, Memoria em que se pretende provar, etc,
Pííg- 79-
I()4 VARÕES ILLUSTRES
e temerosas intimações ^ O que é, porém, sobre-
maneira singular e denuncia até que ponto eram
systematicas e fabulosas em grande parte as
concepções geographicas dos mais lúcidos esgi-
ritos durante a edade média, é que as estatuas
c columnas se repetiam no Oceano oriental, Na
hypothese seguida pelo árabes de que a Afri-
ca, encurvando-se para o Oriente, ia de perto
confrontar com a ponta meridional da península
indostanica e o mar das índias apparecia con-
vertido n'um puro mediterrâneo, era forçosa a
supposiçãp, , de ,vw, ^ejsp-çitç, -correspondente .ao
de Gibraltar. Ali demandava a symetria que:
figurassem repetidas as estatuas e as columnas. _
Havia pois, segundo a expressão de Roger Ba-
con, um dúplice estreito no Oceano, duplex
Gades, a Gades de Hercules, entre a Europa e
as terras africanas, e a Gades de Alexandre,
entre a Africa e a Ásia oriental. Esta doutrina
repetia o celebrado cardeal. Pedro d^Ailly em
1480, inscrevendo na sua carta as Gades orien-
taes e occidentacs e attribuindo em um dos seus
1 Macedo, Memoria em que pretende provar, etc, pag.
io3. Sobre as estatuas erigidas em vários rios e costas do
Oceano vej. ibid., pag. ii3 c 122.
VASCO DA GAMA l65
escriptos á índia ás suas còluflihas de Hercu-
les, eguáesòu similhahteà âs'de Gibraltar ^
No famoso planispherío'dÒ^celebre camaldu-
lense veneziano, Fra Mauro, de 14G0, quando
já estava descoberta pelos navegantes portugue-
zes uma grande parte do extenso litoral afri-
cano ao occidente, as estatuas, que nas cartas
antecedentes, por exemplo na dos Pizzigani, de
1367, eram figuradas nas ilhas Afortunadas ou
Canárias, appareciam agora deslocadas da sua
antiga posição, e se phantasiavam erigidas muito
alem do limite clássico e tradicional, imposto ás
anteriores navegações. Em presença dos desco-
brimentos portuguezes, que já então davam brado
pelo mundo, e eram notórios ao cartographo
veneziano, affirmava já elle expressamente não
acreditar, como os seus predecessores, na exis-
tência das estatuas mysteriosas, nem que fosse
defeso áós navegantes, em ponto algum do glo-
bo, o aífrontar mais avante o Oceano 2. Tão ma-
nifesto era já n^aquelle tempo que os erros dos
geographos antigos e dos cosmographos na edade
1 Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Entdeck., piig. 75.
2 Vise. de Santarém, Recherches sur la décoiirerte, etc,
pag. 1 12-1 14.
l66 VARÕES ILLUSTRES
média começavam a dissipar-se á luz que der-
ramavam pelo mundo as nossas navegações.
A este mesmo cyclo m\'l]iico-gcographico per-
tenceria talvez aquella estatua singular, que a
tradição portugueza affirma ser achada na ilha
do Corvo, e de cujas circumstancias faz parti-
cularisada menção o grave e severo chronista
Damião de Goes^
Outra lenda geographica mui popular e predile-
cta aos cartographos na edademédia, éad'aqu€l-
les povos singulares, a quem por uma mal inter-
pretada tradição biblica davam o nome de Gog
e Magog2. Eram elles os que, precedendo o jui-
zo universal, deveriam, quasi no fim do mundo,
visitar a terra com suas terríveis devastações.
Por esta irresistível inclinação, com que os cos-
mographos d'aquelle tempo se compraziam em
mesclar á geographia as eioutrinas religiosas c
as lendas mysticas do christianismo, os carto-
graphos reservavam quasi sempre um logar no
mnppa-mundi áquellas gentes, fabuladas como a
guarda de honra do Antichristo. Nas cartas fi-
1 Damião de Gocs, (^Jironica do príncipe D. João, Lis-
boa, i5T)7, cap. IX, foi. 9-10.
2 Genes., x, 2. — Ezechiel, xxxviii. — Apocalypsc, xx, 7.
VASCO DA GAMA 167
gurava a celebre muralha, que separava Gog e
Magog do restante das terras habitáveis, e que
Alexandre Magno, na sua marcha triumphal con-
tra o Oriente, tinha feito erigir para obstar á
invasão d^aquelles tremendos inimigos da hu-
manidade ^ Nas cartas do xv século, entre ellas
no famoso mappa-mundi de Andrea Bianco, de
1406, o paiz de Gog é figurado por um castello
situado sobre uma alta montanha, associado pelo
cartographo ás façanhas do grande Macedónio-.
No mesmo século o mappa-mundi do museu Bor-
gia ainda representa a muralha de Gog e Magog
e assigna a estes povos na Ásia a sua morada,,
attribuindo-lhes a estatura de gigantes descom-
&'t>'
Tal era, qual em summula fica patenteado, o
1 Peschel, Gesclu der Erdk., pag. 85.— Vise. de Santa-^
rcm, Hist. de la Q;5;?z. et de la Cartogr.^ iii, pag. xlvi-xlmi,
333 mappa-mundi do palácio Pitti, em Florença),. 2o5
mappa-mundi do ms. de Marino Sanuto, na bibliothcca
de Bruxellas).
2 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., 111, pag. 378.
-^ Vise. de Santarém, Hist. de la Cosw. et de la Car-
ogr., iir, pag. 271-273.
l68 VARÕES ILLUSTRES
estado dos conhecimentos geographicos na epo-
cha memorável, em que Portugal se aventurou a
cursar os mares desconhecidos, diante de cujas
portentosas e fabuladas maravilhas haviam tre-
mido e recuado os mais audazes navegadores.
A geographia era pois um cahos inextricável de
systemas contradictorios, de ignorâncias disfar-
çadas na fabula e na ficção, de erros tradicio-
naes engrandecidos pelo tempo e venerados pela
auctoridade e pelo nome dos maiores entre os an-
tigos escriptores. Todavia é forçoso confessar que
nas sombras, em que a verdade se escondia,
alguma luz escassa e duvidosa se coava, por
onde um espirito inquiridor, estudioso, refle-
xivo poderia acaso rastrear uma ou outra noção
provável ou verdadeira. Apesar das dissidências
de opinião entre os antigos, a forma espherica
da terra era já admittida geralmente. A com-
municação do mar das índias com o Atlân-
tico tinha em seu favor o parecer de alguns
auctores, e a tradição, se bem que nebulosa, apro-
veitável de périplos ou circumnavegações reali-
sadas em redor da península africana. Esta
hypothese racional tinha achado representação
em vários monumentos cartographicos da eda-
de média, principalmente em França e na Ita-
VASCO DA GAMA lb()
lia'. No mappa-mundi de Marino Sanudo, de
1*329, os dois mares apparecem constituindo
uma única massa 4^ aguas, sem nenhuma inter-
rupção. O Oceano Indico é todavia figurado
como um mar mediterrâneo-.
Se os dictames eram vários sobre serem ha-
bitáveis ou inteiramente deshabitadas as regiões
equatoriaes, a doutrina mais seguida pelos es-
píritos de quilate superior era a de que ao
menos até á latitude boreal de doze graus e
meio a zona tórrida não era incompatível com a
humana habitação.
1 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosiu. cl de la Car-
togr., Ill, introd, pat^. xxxvi.
2 Pcschcl, Gesclu der Krdk., pag. 102.
CAPITULO XII
os NAVEGADORES EXTRANGEIROS
NA COSTA DE AFRICA ANTES DO INFANTE
D. HENRIQUE
Le fait incertain du voyagc de Vi-
valdi ne peut infirmer les faits cer-
taiiis, qui constatent la prioritc des
dócouvcrtes africaines des portugais.
\'iscoNDE DE Santarém, Recher-
clies, pag. 25 j.
Tem sido questão largamente controvertida
entre os modernos historiadores da geographia,
qual fosse de todas as nações marítimas da Eu-
ropa meridional a primeira, que aventurou os
seus navios não somente a explorar as costas
africanas alem do cabo Não, se não também
a tentar os caminhos do Oceano para chegar á
índia oriental. Aos árabes se attribue, por tes-
temunhos, ao parecer insuspeitos, a única via-
gem, em que estes incansáveis exploradores ti-
vessem abordado até um cabo, que se afigura
ser o Bojador. O geographo árabe Ibn-SaVd, no
172 VARÕES ILLUSTRES
XIII século, refere que Ibn-Fatima, havendo em-
barcado em Nul-Samtha, naufragara na costa
Occidental de Africa, e proseguindo n\mia cha-
lupa a sua navegação, sem acertar na rota, que
seguia, avistara um promontório, o qual no texto
arábigo tem o nome de montanha resplandecente
[ai djebel alammâ). Ali, diz, fora prevenido pelos
berberes da tribu Beni Jodalla ou Kodalla, de
que se não approximasse d^aquelle cabo teme-
roso, porque todo elle era uma pura congerie
de serpentes, que devoravam os navegantes,
quando attrahidos das esplendidas cores de seus
rochedos, ousavam abicar ás suas escarpas. O
parallelo entre a narração de Ibn-Fatima e o
que os portuguezes descobriram em suas pri-
meiras expedições na costa de Africa, parece
confirmar que a marítima aventura do navega-
dor arábigo, apesar das maravilhas inseparáveis
da phantasia oriental, se não pode plausivelmen-
te annumerar entre as fabulosas narrativas, de
que são copiosos os viajantes e geographos mu-
sulmanos^
I «iNoLis avons donc un voyíige fait par Ics árabes aii
dela du cap Bojador et au golphe et iles d'Arguim avant
les dccouvertcs des portugais.» Vise. de Santarém, Re-
VASCO DA GAMA lyS
A viagem de Ibn-Fatima até o cabo Bojador,
segundo Peschel e Reinaud, ou até o cabo Bran-
co, na opinião do visconde de Santarém, foi ape-
nas determinada pelo acaso, sem que a prece-
desse e alumiasse nenhum propósito firme c
deliberado de seguir até paragens tão distantes
a timida navegação. Os mareantes árabes, le-
vando sempre na mão a costa de Africa, sem
nunca se engolfarem ao largo no Oceano, ti-
nham por termo de suas mais remotas excur-
sões o cabo Não^ Um eminente geographo al-
lemáo escreve a propósito das viagens dos ára-
bes no litoral africano estas palavras: «Se os
árabes pelos seus correligionários, os berberes
Sanhadja, que então como hoje costumavam con-
duzir os seus rebanhos até o Senegal, tiveram
porventura noticia doeste rio, em nenhum de seus
geographos se nos depara uma só descripção,
que lhe possamos referir» 2.
chcrches siir la découverte, etc, introd., pag. lxxxiv. —
Peschel, Gesch. der Erdk., pag. 118. — Ibn-Fatima, cm
Abulféda, ed. de Rcinaud, 11, pag. 21 5.
I Peschel, Gesch. der Erdk., pag. 118.
- " Wenn auch dic Arabcr durch ihre Glaubensgenosscn
dic bcrberischcn Sanhadscha,wclche ihre Heerdendamals
174 ■ VARÕES ILLUSTRES
Antes que a má fortuna d<e um naufrágio le-
vasse Ibn-Fatima até mui longe do termo ha-
bitual das navegações arábigas, ha noticia de
uma anterior expedição realisada por árabes de
Hespanha. Doesta vez, porém, caberia á Lisboa
musulmana a gloria da primeira e mais antiga
navegação, se náo estiv^essem concordes os mais
graves historiadores, eruditos e geographos por-
tuguezes e extranhos em capitular de suppositi-
cia e fabulosa a extraordinária expedição.
A lenda romanesca é contada pelos geogra-
phos Edrisi e Ibn Al-Wardi, conformando um
e outro no fundo da sua historia, mas dissentin-
do notavelmente nas circumstancias e episódios.
Oito árabes da cidade de Aslibuna, a veneranda
avoenga da nossa Lisboa christan, mui conjun-
ctos pelo sangue, concertaram entre si o esquipa-
rem um navio, em que fossem a inquirir o que
se continha no Oceano e quaes eram os segredos
e os limites d^aquelle mar de trevas e mysterios.
Na versão de Ibn Al-Wardi os oito primos ou
so gut wie heutigcn Tages, bis zum Senegal zii treibeii
pflcgten, habcn konnen, so íindcn wiv ihn doch bei ihrcn
Geographcn.nirgends erkenntlich gcschildert.» Peschcl,
Gesch. der l\rdk., pag. ii8.
VASCO DX GAMA I7D
parentes mui chegados propunham-se, ao avcn-
tarar-se no Atlântico, descobrir o que existisse
no fim d''elle, e ver tudo quanto ali se depa-
rasse de raro e maravilhoso.
Haviam-se uns a outros dado juramento de
que ou pereceriam na façanha ou não haveriaín
de volver á sua pátria, emquanto não chegassem
ás terras mais distantes. No reconto de Edrisi
e Al-Wardi são egualmente maravilhosos os suc-
cessos. Depois de descobrirem e visitarem a ilha
dos Carneiros, navegando por doze dias mais
ao sul foram dar em outra ilha, onde o rei os
acolheu, e depois de alguma demora os mandou
lançar manietados c com vendas em seus olhos^
a uma praia remota, onde ficaram. Acudiram-
Ihes os indígenas. Desataram-lhes as vendas e as
prisões. Disscram-lhes que d''ali ate Lisboa gas-
tariam muito alem de um mez cm sua derrota.
\'olveram finalmente á terra pátria. E d''esta
portentosa navegação, conta Edrisi, se derivara
a uma rua de Lisboa o nome de Maghrin^in,
porque assim foram cognominados os audazes
navegantes, como quem dissera os que foram
enganados. Al-Wardi escreve que a um bairro
de Lisboa ficara o titulo de Mogharirin, ou dos
aventureiros, porque assini eram conhecidos os
lyÔ VARÕES ILLUSTRES
oito lisbonenses exploradores. E affirmam um
e outro, que em seu tempo existiam na cidade
musulmana os sitios memoráveis, que refe-
rem ^
Da erudita e profunda investigação de um il-
lustrc philologo portuguez resulta manifesto o
caracter fabuloso da expedição 2. O próprio Edri-
si desconfiou da sua authenticidade, quando ao
descrever a ilha dos Carneiros, e ao referir uma
notável singularidade, accrescenta em tom de sce-
pticismo: «Se é que devemos acreditar nos ma-
ghrurinos»^. Os dois novíssimos historiadores
da geographia, Peschel e Vivien de Saint-Martin,
incluem a odysséa dos oito aventureiros de Lis-
boa no conto das lendas geographicas^^.
1 Macedo, Memoria em que se pretende provar, etc,
pag. 122-141.
2 Macedo, Memoria em que se pretende provar^ eic,
-" Macedo, Memoria ein que se pretende provar, etc.
pag. 82.
4 «Dahin (dem Gebiete der Sage) rechnen wir auch die
Erzahlung von den atlantischcn Abcnteucrn der Brii-
der Maghrurin». Peschel, Gcsch. der Erdk., pag. 119. —
<cL'Atlantique, ou comme la nommaient les árabes, héri-
tiers des vieilles legendes grecques et romaines, la mer
Ténébreusc^ fut aussi le théatre de plus d'une histoirc
VASCO DA GAMA I77
Os árabes, que pela situação da sua pátria en-
tre dois golfos, o arábigo e o pérsico, e a sua
proximidade por um lado ao Mediterrâneo, pelo
outro ao mar das índias, estavam melhor que
nenhum povo da edade média em condições pro-
picias de largas e proveitosas navegações, não
mentiram a esta sua vocação. O Mar Vermelho,
o seio Pérsico, e o Oceânico Indico foram desde
remotas eras os theatros de suas audazes e cubi-
çosas aventuras. Mas o Atlântico, apesar de que
banhava em grande parte o litoral da Hespa-
nha^ a mais preciosa conquista dos crentes do al-
corão, ficou para elles sempre quasi defeso, e in-
transitável pelos hórridos mysterios, que encer-
rava, e pelos phantasticos terrores, que infun-
dia'.
fabuleusc. On racontait surtout celle de huit habitants
de Lisbonnc (Achbouna) quí avaient equipe un navirc
chargé de provisions pour plusieurs móis, afm de dccou-
vrir, disaient-ils, ce qu'il y avait dans TOcéan et quelles
en étaient les limites. . . Cette entreprise, qui valut il ses
auteurs le nom reste populaire de maghrourin, se place
dans la première moitié du douzième siècle». Vivien de
Saint-Martin, //i5/. de la géogr., pag. 247-248.
> «Die Schiffhrt der Araber im Westen der Erde, aiif
lyS VARÕES ILLUSTRES
Se os árabes, a quem aliás a edade média em
grande parte é devedora dos seus conhecimen-
tos acerca da Africa septentrional e das regiões
interiores do continente, não precederam os por-
tuguezes nas explorações do seu desconhecido
litoral, tem-se pretendido nos modernos tempos
desentranhar de escriptos e de mappas anterio-
res ao século xv a evidencia de que outros po-
vos navegadores haviam lustrado as aguas do
Atlântico largos annos antes de começarem os
nossos gloriosos descobrimentos.
A prioridade nas aventuras e viagens maríti-
mas á costa Occidental de Africa tem sido mo-
dernamente reclamada em favor dos genovezes.
Pretende-se fazer acreditar que já desde os fins
do século xni ou quando muito em princípios do
XIV, os ousados marinheiros da. poderosa repu-
blica italiana haviam descoberto as ilhas Caná-
rias. D'esta vez é Petrarcha, o mavioso poeta de
Vaucluse, quem é chamado a depor no pleito
geographico e a disputar aos portuguezes o seu
direito incontestável de primeiros e immortaes
dcm mittellandischen Mccre und im Atlantischcn Occan,
hat nie grosse Fortschrittc gcmacht.» Rittcr, Gesch. der
Erdk. und der Entdcck., pag. 17C.
VASCO DA GAMA I 79
descobridores. No tratado latino, que intitulou
De pita solitária^ refere o enamorado lyrico tos-
cano, que o descobrimento das Canárias por uma
frota genoveza andava na tradição e memoria da
geração antecedente ^ Não affirma o poeta com
certeza o anno ou as circumstancias da famosa
expedição. Reconta apenas, como em traços fu-
gitivos, o que ouvira dizer aos mais antigos, sem
que desse a tão extraordinário acontecimento a
attenção c o louvor, que uma empreza tão nova
c singular estava demandando. E todavia sobre
tão débil fundamento se estribaram eruditos his-
toriadores da geographia para darem como fa-
cto incontroverso o que não tem em seu favor
nenhum documento irrefragavel-.
Gomo seria possível admittir, por uma ligei-
ra referencia n\im li\ro de Petrarcha, que uma
1 Petrarcha, De yita solitária, lib. 11, cap. iii. — Memo-
ria patnun^ na memoria dos pacs ou dos mais velhos, diz
o poeta.
~ Pcschel, Gesch. der Krdk., pag. lyS, afíirma expres-
samente o feito naval dos genovezes: «Ihrcn kundigcn
Seeleutc verdankcn wir die Entdeekung der Canarien,
entweder noch am Ende des i3 oder am Anfang des 14
Jahrhunderts»; Aos. seus hábeis marinheiros — os de Ge-
iiova — devemos nós o descobrimento das Canárias pelos.
8o VARÕES Il.LUSTRES
cmprcza tão rara e singular se houvesse effei-
tuado sem que nas historias da grande e mariti-
ma republica se perpetuasse a sua memoria?
Génova na edade média repartia com Veneza
como que o principado e senhorio dj mar Me-
diterrâneo. Maritimos foram sempre os seus
maiores e mais honrosos feitos. Se porventura
os seus audazes marinheiros, ao deixar as co-
lumnas de Hercules, em vez de endireitar para
o norte a proa das galés para irem traficar em
Flandres, levassem o rumo ao meio-dia em de-
manda de terras africanas, como é que tão ex-
traordinário acontecimento ficaria apenas com-
memorado no livro mais obscuro do grande
lyrico de Arezzo ? Como é que uma vez lustrado
o tenebroso pélago não iriam novos aventureiros
genovezes cruzar já mais adextrados e scientes
fins do século xiii ou principies do século xiv. Vivien de
Saint-Martin, a exemplo do geographo allemão, seu con-
temporâneo, dirime o pleito com egual e peremptória
conclusão: «Un passage de Pétrarque, dans son Traité
de la vie solitaire (écrit en 1 346), montre que dès le com-
menccment du quatorzicme sièclc, pcut-ètre à la fin du
treizième, les génois avaient visite les iles Fortunées, qui
sont nos Canaries.» Vivien de Saint-Martin, Hist. de la
géogi'., pag. 3o I.
VASCO DA GAMA l8l
O caminho dos primeiros navegadores seus con-
terrâneos? E se causas imperiosas e invenciveis
obstáculos SC oppozessem a que Génova prose-
guisse na empreza começada, não pediria ao me-
nos a honra da republica, tão prima rias cousas
navaes e tão ciosa da sua gloria, que nas histo-
rias se não sepultasse no silencio um feito de tão
notável excellencia e novidade? Gomo é que os
genovezes, de cujas navegações para Flandres
somente ha documentos incontestáveis desde o
XIV século', principiam a cursar o Atlântico, en-
golfando-se desde logo nas suas regiões mais des-
conhecidas c mais povoadas de terrores? E era
havida por tão fácil a viagem desde os pontos
do Mediterrâneo a Antuérpia, que o infante
D. Henrique, segundo o testemunho de Azura-
ra, censurando os navegantes portuguezes, as-
sombrados a principio com as superstições e as
fabulas acerca do Oceano, extranhava que se
deixassem illudir com os ditos de poucos ma-
reantes somente acostumados a navegarem até
Flandres 2.
1 Pcsclicl, (jcsch. dcs Zcitalt. der Kutdcck., pag. 44.
2 "Se ainda estas cousas, que se dizem, tivessem algua
autoridade, por pouca que fosse, nom vos daria tamanha
l82
VARÕES ILLUSTRES
Ora acontece que a expedição genoveza ás
costas africanas referida por Petrarcha, vem a
coincidir com uma viagem, que alguns têem
pretendido proclamar como anterior de largos
annos aos primeiros descobrimentos portugue-
ses. E é notável que todas as suppostas nave-
gações, que precederam as de Portugal na costa
de Africa, só começaram a sair á luz muito
depois que os portuguezes ensinaram aos demais
povos navegadores o caminho das novas, arris-
cadas e gloriosas explorações. Affirma-se ain-
da hoje dogmaticamente, como se fora axioma
evidentissimo e repetem alguns modernos histo-
riadores da geographia^ que entre todos os mo-
dernos povos europeus haviam sido os genove-
zes os primeiros que tentaram a circumnavegaçao
da Africa e a rota marítima da índia, quasi dois
culpa, mas quereesme dizer que por openyom de quatrtí
mareantes, os quaes como son tirados da carreira de Frau-
des^ ou de alguns outros portos pêra que comunmente
navegam, nom sabem mais teer agulha nem carta pêra
marcar.» Azurara, Chron. do descobr. e conq. de Guiné.
cap. IX, pag. 5j.
I Peschel, Gesch. der Erdk.j pag. 179.— Vivien de Saint-
Martin, Hist de la géogr., pag. 3o i.
VASCO DA GAMA l83
séculos antes que o illustre navegador Bartho-
lomeu Dias tivesse dobrado o cabo das Tormen-
tas. Diz-se que cm 1291 se aprestara em Génova
uma frota de duas galés bem apercebidas de
quanto era mister, as quaes saíram pelo estrei-
to de Gibraltar ao Oceano, sem que nunca
mais se podesse saber o seu destino. Até ha
poucos annos a única menção, que d'esta em-
preza naval dos genovezes se deparava em es-
criptor contemporâneo, era apenas a que se lê
no livro intitulado Conciliator differentiarum
(Conciliador das diííerenças) de Pedro de Aba-
no, philosopho, medico e astrólogo, nascido
em 12 53 no território de Pádua e fallecido em
i3i6. Na differentia 67 doeste livro, depois de
explanar que os desertos africanos são de enor-
me vastidão, arenosos, privados de agua doce,
cheios de serpentes e peçonhentos animaes, de
maneira que ninguém pôde facilmente ali che-
gar, prosegue asseverando que poucos tempos
antes d'aquelle, em que escrevia, os genovezes
haviam apparelhado duas galés abastecidas de
todo o necessário, as quaes passaram pelas
columnas de Hercules, situadas nos últimos
confins de Hespanha, e se ignorava o que fora
feito d^ellas, sendo já decorridos cerca de trinta
184 VARÕES UlUSTRES
. ,oiíi'jtf4unom Bido bíjís bh oíd^iíxs mu g^n
annos^ Ha poucos annos, porem, um saoio
germânico de notável reputação, Pertz, o pu-
blicador dos Monumenta Germamae Histórica,
em um escripto sobre a prinieira tentativa para
descobrir o caminho marítimo das índias orien-
,,ii i. uiíiUj uii .\rij4 uiaijc abo DJri;)m
taes, revelou um passo dos annaes da republi-
ca de Génova, d onde poderia inierir-se que em
1 291 realmente se enectuara uma expedição de
duas galés genovèzas, ás qúaes saindo pelo es-
treito de Gibraltar, navegaram ao longo das
costas africanas. A narração puoTicad^ pelo
dr. Pertz e copiada de uni manuscripto da pro-
pria letra de Giacopo ■ Dona, o nistóriador ou
annalista genovez contemporâneo, um dos con-
tinuadores das chronicas de Caífaro. Este ma-
nuscripto, de que Muratori havia publicado ape-
í; oi/Jíii
jxj(yi,i i;i. .. . >..ibnl i^h eon^q óh m^zú^
I «Paruih ante ista tempor,^. p;çnuçj:>f^s^(Jua5jpjU^^v^çT
re omnibus necessariis munitas galeas, quae per Gades
Herculis in fine Hispanine situatas transiere. Quid autem
de istis contigerit, jam spatio fere trigésimo ignoratur
anno». Petr. Aban. Conciliat. different., diíF. lxvii. eiix^ertz.
Der a'lteste Versuch ^ur Entdeckiing des Seeweges nach
Ostindien hn Jahre 1201. (A mais antiga tentativa para
descobrir o caminho marítimo das índias orientaes no
anno 1291.) Rerlin, iSSq, pag. 4.
VASCO DA GAMA l85
nas um extracto na sua obra monumental Re-
rum i talicjjf um sçriptor es, conxtm em latim
barbarizado os annaes da republica de Génova,
Annalesi januenses, desde o anno de 1280, até
o de 1294, e foi mais tarde publicado integral-
mente pelo sábio Pertz no tomo xvni dos Mo-
numentos históricos de AllemanhaK
A breve narrativa do annalista genovez limi-
ta-se^ a qizçr textualmente que «no anno de
1291 Thedisio Dória (Thedisius Aurie), Ugoli-
no de Vivaldo, e seu irmão com alguns outros
cidadãos de Génova, começaram a fazer uma
certa , viagem, que ninguém até então em-
prehendêra, para o que apparelharam opti-
mamente dua§ galés, e tendo-as abastecido de
vitualhas .e , de asua e outras cousas necessárias,
as enviaram no mez de maio ao estreito de
Ceuta, a fim de que pelo mar Oceano se diri-
gissem ás partes da índia e d'ali trouxessem
proveitosas mercancias, e que n^aquelles na-
vios foram pessoalmente os irmãos Vivaldi e
I Momimenfa Germaniae histórica, Scnptores, tom. xviii,
llannovci-, i863. Os Annales jamténses de Jacobus Auria
ulacopo Doria} es"tâo impressos n'este volume desde pag.
2S8 a 356.
i86 VÀk6tís íLiiúèrVkÉs
maravilha hão somente paíá es 'qtieMi^viraiii,
sehâò feitíberri^{)áfaliè ^^^^^'^mwit^sím^máomditào
passírM-^b^^áféá píii^iin¥^TôgtíH^ qlíèninhái^níe
de tíòzira,' iitítóà tóáis^^Hó^^^fíot^^ des^
tíno^^^íf^áâ fâkçâ<9'á!Ey^a?eéteí^%ié^i^tado^^
/>í]n/i O .^yluoisH 3b ^jiafiiíjioD 8b moòn^-nnv
_ ^^ ^^ Boilduq^i £b íbíoííi
'>->J^-»^od<gM^í^*Uipp«íaano;T±iedisius Aijriei, Ugolinus, de
Vivaldo, et ejus frater cumquibusdam aliis civibus Janii^
ceperuaí:^ facere , ^uoddí^m^ viagami. guod aliquis jasque
nunq faaere minimç attempt^vit. Nam armaverunt opti-
;-^,a, r/aíJ juL :ji. J/U^^ím ) R •.■<:• "míj - -r , ,. ;• , ,,,.^
me duas galeas, et victualibus aqua et aliis nécessarns
infra eis impositís, misérunt easde itrerise Madii dé véí*-
sus strictum Septe, ut per maré Occeanitm ir^nt ad par-
tes Indie rhíéi^cífnonia utilia inde fertentes. In quibiis ive-
runt dicti duo fratres de Vivaldo personaUter ^t duo
í^§tres Min9pjeSf,QijiQ^ qujíjpm rnira^bile fuit non soluin
,'YÍdentibus sed etiam audientibus. Et postquam locum. qui
dicitur Gozora transierunt, aiiqua certa nova non nabue-
'í)íia :' <• -jí 'Wih . M-jni, ..■,;.,,,-. :r-., ..■>.,-. ,.„ ......^ ,„
runt de eis. Dommus autem' éos custcídrair ôt sanoá et in-
cólumes reducat ad prdpriav» Pertz. Monum. Gennaniae
histórica, Scriptores, tom. xviii, Hannov. i863, pag. 32 1. A
transcripção, que apparece na memoria de Pertz, Der
aelteste Versuch, etc, diífere da recensão publicada nos
Monumentos hisiortCo^'yéúi''(\\ie cm vez áe armm>^7'unt
tem ornaverunf é éííi\tz''át '^i dicititr Go^òrà) está im-
presso qui Go^^ora dièiiui'. ^ ^^ • ■
VASCO DA GAMA 1 87
nomes dos ousados aventureiros, caudilhos da
expedição, emquanto que se passam em silen-
cio na lacónica, yi?>emoria de Pedro de Abano.
Condizem porém notavelmente as duas comme-
morações em affirmar que ficara ignorado o
êxito d'aquella primitiva navegação. O astró-
logo italiano perde a noticia das galés apenas
transpõem as columnas de Hercules. O anna-
lista official da republica de Génova assevera
que, passado um logar chamado Gozora', nunca
mais houvera novas da infeliz expedição.
Pertz (Der aelteste Versuch, etc, pag. ii e
]2) conjectura ser a Go:{ora, de que falia Jaco-
po Dória, o logar que na carta dos irmãos Piz-
zigani, de iSóy, reproduzida no seu Atlas pelo
visconde de Santarém, e só em parte copiada
por Lelewel, apparece com a inscripção Capiit
Finis Goiolae, e na carta catalan de iSyõ com
o nome Go\oli, e suppõe que ambas estas indi-
cações se referem ao cabo Juby, que "nos limites
meridionaes do império de Marrocos é situado
cerca do vigésimo oitavo grau de latitude boreal,
I Gozora ou Gosola, como está cscripto na carta gco-
graphica dos Pizzigani de iSGy, é segundo Peschel a an-
tiga Gctulia. Peschel, Gesch. der Erdk., pag. 179.
l88 VARÕES ILLUSTRES
( iX ■ AMA O A a C)j?.A-J
em frente das Ganafías.Sê^e plausível o presu-
póstodé PèKz/â^fànfièi^sÍTiavègação dós gencyve-
zès fícáná atádarriííito áqiiem do cafeo Bojador.
À mais antiga menção, que doesta viagem africa-
na ^è nos depara em historias genovezas impres-
sas, é a qué deixou fèfS^Giustiniáhi', qúe nasceu
éffi';^4^,''ffltófes'Bhnos depois 'iíà^ôi^
ze§'^tíàvegaram alémdd) cabo Bojador. A btó^e
narrativa d''este escríptof confirma as antecedéVí^
tes réláçoès, quanto a ser totalmente ignorado
ò destino das galés, depois que traspassando
o estreito de Gibraltar navegaram em demanda
da Ihdiá ■ òi-ièrilíaí ^ ; A memoria da expedição
genoveza reapparece na historia de* 'f^GèhóvSÍ
(Historia genuensis) de Ugo FoglietVá, t)"^ôM^
nada mais fez senão seguir litteralmente, citan-
do-o como auctoridade, ao seu antecessor.
No principio' do século presente um sueco resi-
dente em Géricívà, Graberg de Hemso, publicou
haver "éiitoHMúò nò^ 'á!fchivos'da cidade utrí dó-
cumefiíõV íío 'qíi'àV'^ífh Ikfiríi^ Bárbaro se refere a
■ '■y^íiV ,2£jtrlqí>igo^^ aiibnol ^L:. ci^^-''^'
TI3 íi3noÍDJ5n oiiqÓTq lomB' o iBmimjB
vers. cit. em Peschel, Gcsch. der Erdk., pag. 179. — Vise.
de Santarém, Recherches, sur la décoiiverte, etc, pag. 244
VASCO DA GAMA 1 8^
viagem ^gp ir-in,ã^9^s Vivalçli com uma circuiTfx
stançia,|4^KÍS^9>i9iF9í?S? >4Míí*F4;W^^ ^^^ .^^adi-
e fflAis ngo ^p^^^^^^t^^^ ^g.p^sç^.gi^e^a^^^e-
guada prpseguíra^ç^ u^P^.?) :?íf?êíf;4M?^^. (^? ^"^
cidade da Ethiopia, a qije |Cjh|amavara Mena ' .
NOj mesmo manuscripto de 1455, se encontra
uma carta de Antoniotto Usodimare ou António
de Nolgy^jq^ue .^eryiv^,^)^^^^ expedicõç^^ dç^.jjí^fante
D. Henriqviç eflj jÇprnpanhj^, jdpj jc^lebrç.^^^^^
dpr ,Al»isio cje Ç^jdanipstQ. N'elkreferç,Q,;^ven-
tureiro genovez haver encontrado na Guiné um
descendente de um dos seus compatriotas, que
hayfa, centp ^ ^ ^ .^eíj^nta , annos tinhç\ni ido nas
galés de.^Qjiia, e;4^ Viv^dif jSçgj^ndo ,a narra-
ção^ jdçyspj4imai^e,5 ^ a expedição das , galés geno-
veza^foi np^^pj^o djÇ ^if.jijj. jAyvkgem^-^^ç^tes.dQÍs
aventureiros, se em presença do documento pu-
blicado pelo dr. Pertz não pertence inteiramen-
te ao numero das lendas geographicas, inven-
tadas para amimar o amor próprio nacional em
desabono dos extranhoS,' é )àb''th[eilòá úm suc-
• Annali di geographia e di statistica, Génova 1802,
tom. II, pafí 287 e scg.
190 VARÕES ILLUSTRES
ee^^ tão duvidoso, e difficil de attestar^ que
mal pôde contrapor-se aos maravilhosos feitos
portuguezes, comprovados por testemunhas in-
suspei^tf^Sci^y^enerados como preeminência e glo-
ria portugueza por todos quantos assistiram
assombrados ás nossas arrojadas e primeiras
expedições ^
Ainda, menos firmada em plausiveis documen^
tos^idíeíjique a tentativa genoveza de 1291 é a
qu^iise attribue ao, catalão ou antes malhorquino
Jayme Feri:er.>'Diz-se que O' navegante se fizera
de vela a 10 de agosto de i356, com destino ao
Rio do Oiro, e que nunca mais voltara da sua
desgraçada expedição. O primeiro documento, em
que se firma a existência da mallograda empre-
za de Ferrer, é um letreiro, que iigura na ce-
lebre carta catalan de 1 365, na qual se vê dese-
nhado.' um inavio ao sul do cabo, que mais tarde
os portuguezes appellidaram Bojador. Junto do
baixel apparece uma inscripção, a qual declara,
em linguagem catalan, que a 10 de agosto de
.baí>ri3'i'
I «Lc fait incertain du voyage de Vivaldi ne pcut infir-
mcr les faits certains, qui constatcnt la priorité des dé-
couvertes africaines des portugais.» Vise. de Santarém, Re-
çherches sur la découverte, etc., pag. 257.
VASCO DA GAMA 10)1
1 346 partiu o navio, Uxer, de Jayme Ferrer para
andar no Rio de Oiro ^i. O segundo testemunho
allegado cm favor da expedição do malhorquino
é o manuscripto já citado e descoberto^ por
Grâberg de Hemso, no qual se reprõdtíP'.>''â in-
scripção (ia carta catalan e se accrescenta que
da galé de Jayme Ferrer nunca mais houve no-
ticia. Cumpre não esquecer que o documento
genovez, afora a sua nenhuma authenticidade c
o pertencer a tempos mui distantes do anno,
em que se diz emprehendida a exploração, traz
errado o home do navegante catalão, chaman-
do4he Ferne e não Ferrer. Os monumentos, —
ser ;me recém tal nome as provas, que se addu-
zeni^para attestar a navegação do malhorqui-
no, — têem sido tão largamente discutidos e
aquilatados pelo mais erudito propugnador da
prioridade nos descobrimentos portuguezes, o
visconde de Santarém, que ninguém hoje se
atreve a consignar o nome de Jayme Ferrer
nos fastos geographicos, senão como de quem
apenas emprehendeu uma excursão á costa de
Africa, sem que da sua extensão e dp seu
I Visc.de Santarém, /^(?6"/íerr/7f 5 .swr la découverte, etc,
pag; 227-228.
1C)2 VARÕES ILLUSTRES .
destino se conservasse a minima informação.
Todos os que persistem em defender por ver-
dadeira a navegação dos catalães, conformam
em confessar que núúcs} jMis^' soube ninguém
em que veiu a parar a expedição, porque o
navio de Ferrer jamais voltou. Porventura se
perdeu logo ás primeiras singraáúrás^río mar
das trevas até ali impervio e temeroso aos
.p.Oíj^ap^r^t^^.vi-èín^rWJR.^^i^í^ai^G mfructuoso como
o de Dória e de Vivaldi, como talvez outros
mais de que não ficou sequer recordação.
-iqo ÍBi^^ -loq 38-Bí7Brí bibiusA vu oqrrrjij o/i
- tdob B obBDHBÍBdB Bfínií 38 msugnín oup oBin
moVí .-íobBJoH oÓÊo obnsmau c
íBffi òa rnu -aup BYBiomornmoo oílpibb'i3
^ aslbupk obsiuin^YB 3283yíJ
-D}2fí[ aorfiBnííj iòBup çsbBbíljjijii^qmi Bi3DnÍ2 A
^^■- ^ob.BíainoifÍD oiíamiiq ob ^Bsaíqrnl? eu,-
lo'l BDMT
....CAPITULO XIII
l-O^jí^VJEÇ^DORES PORTLGUEZES
NA COSTA, I)í:.AFHIC/V ANTES DO SÉCULO XV
Ausi sunt progenitores tui, Lusitâ-
nia egreséi, nova maria, novas terras,
nova atque incógnita sidera scrutari.
Luís Vives, De Corruptis artibus,
dedicatória a D. JoáoIIL
No tempo de Azurara havia~se por geral opi-
nião que ninguém se tinha abalançado a dobrar
o tremendo cabo Bojador. Nem escripta, nem
tradição commemorava que um só mareante se
tivesse aventurado áquelles mares'.
A sincera imparcialidade, quasi diriamos ingé-
nua simpleza, do primeiro chronista dos nossos
I «E porque ellc (o infante) tinha voontade de saber a
terra que hya a aliem das ilhas de Canarya e de um cabo
que se chama Bojador, porque ataa aquelle tempo, nem
per scriptura, nem per memorya de nenhuus homeês,
nunca foi sabudo determinadamente acpllidade da terra
que hya a aliem do dicto cabo.» Azurara, Chron. do
descobr. e conq. de Guiné, cap. vii, pag. 44.
17
194 VAR5eS ILLUSTRES
descobrimentos, reluctaria certamente a encobrir
ou dissimular os testemunhos e memorias, que
de outras precedentes navegações andassem cor-
rentes entre o vulgo, òti Çyélo menos auctorisa-
das entre os doutos. Azurara nab- se nega 'á
referir como tradição acreditada ou apenas re-
ferida por alguns a supposta viagem de S. Bran-
dam, nerh se esquece de mencionar o que outros
memoravam acerca de duas galés, C[ue tinham
ido áqoeiles mares africanos e que •nútt^fá^feiáis
volveram da sua rnysteriosa éxpedidSb^í^à^índá
que em seu parecer a tivesse por impossível ou
suspeita^. E não só Gomes Eannes de Azurara,
que nos primórdios de nossas navegações pode-
ria ter mais viva e menos propensa ás malida^
c vaidades a sua como que infantil ingenuidade
senão também outros graves escriptbres de
tempos mais modernos, quando era já chegado
1 «Bem hc que alguus deziam que passará pôr allySam
Brandam, outros deziáín qile foiarri la duas^alèés^è que
nunca mais tornaram.» Azut-ará. ChVon. dò descobr. e conq.
de Guiné/ca^. vir, pag. 44-45.
2 «Mas esto nom achamos per ninhum modo que podes-
se ser.» Azurara, (Jlinm. do descobr. e conq. de Giiiné, cspi
VII, pag. 45. '^''^^ '
VASCO DA GAMA IQD
a9,rj^^;-|^stjgi9í#;]if9pç.yia; p0rtqguez. africano e
o^i^ntal, ; fi;^ , f qui^ef aií^r í dissimular^ a foro d e
portugu^Z^gi,?: y|iidQ&Q9.4a&,pfttóa3 bizarrias, o
qu^ ,^ntçs dç nós, pOjr , estender os âmbitos, da
terra conhecida, haviam os antigos intentado. Ahi
temos Damião de Góes quasi taxando de falso
amor.d^r pátria j^^suppor que antes de nós não
foraiA ,em er^Sí já r-^inota^ ojULtrps rjão tão felizes
mas ao menos tão audazes navegadores ^ E
não menos pçrtuguez que Damião de Góes foi
de certo aquelle bravo, generoso e malaventu-
rado António Galvão, que não sendo apenas
historj^idpr^jde, alheias galhardias, senão actor
he^lçHCo eprinpip^^l 40 drarna dás nossas florias
no Oriente, adpe.d,e, compendiou no seu Trata-
do dos descobrimentos não. somente o que fize-
ram portuguezes, mas o que antes d'elles e no
sei^ tempo tinhai?;tfeiê<f>í ^^^^^^^^ n^"^^'*^ ^ nações.
I Damião de Góes, Chronica de D. Manuel, part. i, cap.
XXIV, edição de 1619, foi. i3. jDaniiiâo de Gocs, Chronica
do príncipe D. João, cap. vu, «E dali determinou de man-
dar navios ahp longuQ da. costa Dafriqua com tençam de
chegar ao fim dos seus pensame;itos> que ^m descobrir
destas partes Qpcidentaes ha nauegação pêra a índia
oriental, ha qiial sabia por certo fora ja em outros tem-
pos achada.»
À^sjslrrí^títfé^ liítí^íiiAtéu W prrô^oMtõ^Mí^somfem
Mi' 'hbhl-Rdd e Valéiití^síthc) sdldadb- 6'^tí€'-a
d'à^r?)iiiàS'esca'de KÍadlim iiò suppòstò prii^fe^í^
dÈãcobrimèhto da ilha da MadeiFá^; • Quecri
pddé acâscr acreditar ttú^ presença d^^estès- 'hon-
íMá'^^'&1e'rrii!ínHS^'^âè ^^ánf§íiyi%}t-os- .^
pára %iMSi?iíkQ gfòríâ^^í^Qrtiip^^ir^si-encob^â-
Íèi& âg^J^i^o^ósitò^àé^^^sfói^çasy comi Gjtte^ õutríis
ria^èofe^à^''às^ liblíVe^íáeáí-' 'precedido' em ^ bu»sdai^ e
dèècíítíiíí^ senda marítima pa'ra as In4i'as'(ífieíi)
fíW?'-Se^ÍiBi^^s^iaíeâ'tR%^'d^>^'gèfiov^zési^
fífi^s 'Mrife^ilíOefô^^Urd^^ie^^^^ i^44hiMs Bèchos
efií jíVBfiificío • eátjCidttihientov ' ápén^atí • régLstrí^do8
nS'^ ^fâfb' ' Bb^éurò' ' de algum livro dí2 -escassa
publrddádè -"oli' memorados' n^algtim maiíttascri^
j^fe W^^doòtth^éhío èe íé ttiuit^ suspwmi;ibe so-
mente descoberto, quando eram já passados
í (iaivâo, i ratado aós iescohnWèiitòs ^^ao^ ãèàvaira-
dos caminhos por onde à pimenik evèp^Barm,'étc., ed. de
1731, pag. 18-19. > ^^ -
^m^mmià. V47:
GadamostQ, imliana,. como era, aixida que não
genoye?,,e apesar do ciúme e hostilidade entre
Veney>a^ Genoya^ ii)íe^ressa4o natiiralmente en^
mo. .rpinguar-il^gjor^ats á^W^B ^9mmfRÍM9fj
ra< mmmm§rmj-^?^^mmíÉ9?í^ mm^m^i
attrib^ê-.aQS í^^e§antç3 4^ ^QrtHg?,l,a prioridade
çtosjfii^3ç<)brimei7tos„africanos. O infante^. Hen-
rique, é na prgpri^iphrase, de Cadaípostp.y ^f7-
wze?7rp. zwi^^e/zíqr A^ . íiayegac/)e^, .no^
o sul dm terras:idmnm^(^^49MM^f^^W'^''^
Gsi portuguezes fer^mors^gufído í9;r)^ye§#f>F:,y.e^
neziano^- os prim^i^íps^ eqrpppjus, , de :,q;|e. tiveram
noticia os negros,;da, Africa occidental-. Nem
estes nem os ;seu^i antepassados havjarp ~ nunca
descoberto um navio, ^(^h,m, 9 n|a.r; . , ^ar,^ci,^-lhes
cousa extraordinária, ver hppieí??, i^jr^pcp^^tp en-
tão» nunca vi:>to^,i>.'aq^;çlla^, ,regi5e^>e Jj^ãpi^pi^pp^,
se admiravam 4)Qíjrírajp Me.fedamostí^j^e ,çjfi^
I Nareg. de Liiis de Cadamosto, na Collecçdo de noti-
ci^^çi^rra aj\ist. e^eo^r-.das naç. uUram, tpm. n, pag- i-
3 Naveg. de Liii^ de Cadamosto, etc, pag. 20.
1()8 VARÕES ILLUSTRES
alvura ' do ' séu r osto^ . Não i$em f impossível
(fà^-^ênóVezes e venezianos, entre"íl><S^ilaefe s-e
níèttítlrá^ám os primeiros navegadoítes-dò 'Me-
dfterl-íánco, os mais hábeis, peritos e arrojados
nás emprezas naV^é^- e- mercantis, guian-db-^se
pela '-' auctoridàde dos ^ aiitigos e peias incertas
noticias, que vagavam na edáde média acerca
do tenebroso mar e da costa africana alem do
Bojador, se lembrassem de afírontar os perigos
do Atlântico em demanda das marávilb^osas (ie-
giões, onde, segunáo- a. crença vulgar, â natu-
reza derramara da slTa inexhausta cornucopia
o oiro cubicado. Mas de todas estas nave-
gações, se foram emprehendidas, de nenhuma
volveram os infortunados viajantes.
Se as pretençÕes dos genovezes e catalães á
prioridade nos descobrimentos africanos estão
hoje tão debilmente documentadas, que apenas
merecem consideração, ainda menos offensivas
d!a^''tkissàs glorias marítimas são as suppostas
navegações e estabelecimentos mercantis dos
normandos na costa de Guine, durante o século
XIV. A ii^sefção, desajudada de qualquer teste-
I Navcí^-. de Liii:^ de Cadamosto, etc, pag. 46. — Ibid.
pag. 02 e 71.
VASCO DA GAMA K)()
miinho. (Contemporâneo, de que certos marcan-
tes de E>ieppeM3e.hayiaín adiantado aos nossos
primeiros descobridores, foi tão victoriosamen-
te confutada por um portuguez eminente inves-
tigador da historia da geographia ^ e por um ex-
trangeiro imparcial^, que apenas alguns escripto-
res franceizes: ; ainda hoje timidamente se aven-
turam a memorar ou a defender a supposta prio-
ridade.
Quando eram já decorridos mais de três sé-
culos depois de consagradas, pelo consenso c
admiração de todo o mundo, as glorias portu-
guezas, é então que em 1GG6 um escriptor nor-
mando, mais cioso dos extranhos lauréis do que
zeloso da verdade, Villaut de Bellefond, se apre-
senta a revelar as emprezas marítimas dos seus
compatriotas,assignando-lhes o principio em 1 364,
em que se diz fundada na costa de Guiné a feito-
ria ou estação commercial de Petit-Dieppe. De-
pois que o viajante francez na costa occidental
• Vise. de Santarém, na sua obra Rccherches siir
la découveriè aes pays situes siir la cote occideutalc d' Afri-
que, Paris, 1842.
2 Henry Major, The Life of Pr ince Henry, surnamed
the navif^ator. Pref., xxiv-li, 117 e seg.
200 VARÕES ILLUSTRES
ÍOI AM AO AíJ ODSAV
de .Africa tivem dada a estampa a sua relação,
vanps escriptores francezes èem adduzir docu-
■unnr>']T7'j -.-Mi -lo/íioi o rrtoj í;í-[ii;r: ,:íiv ;••, -(ovíj} .
mento
SC
to algum substancial e contemporâneo, pro-
guiram corn egual pertinácia e falso patriotis-
mo eni^ asseverar dosmaticam.ente, seguindo ou
copiando a Villaut de Rellefond, que os nave-
gantes de JJieppe . e de Ruão . antes aos .por-
prí f.aòíTnínBra íovor; giGrnyb ?n}j j3i5ííori
^nop. rnBic:
tuguezes, .haviam madrugado,
>jMb ffioJ .soJríDmncioj^^ííj ^(jb^^jnog i;rT oíjpjluPDn
os . lances . e , tormentas do Oceano tenebroso.
Desde Elbee passando, por de la Croix, Masse-
<n\'y\qm') c^phnuYí -/;b^oíornn'fq .viiM-jn-jH '.qi:'
ville, ò padre Labat ate p jerudito Estancellm
'OTfrorrn-rhO^-yr "'^líIJo í;rí <U\'/ . mk-^í:;; f;ij^ );í;.
110 século presente^ as rasões, em que se estriba
-iiííjjí^^i; ^jf^jp iro ojlno^., ;;rfK)fr oi^tj ín/^jtj-i^fn í)up
o íalso patriotismo, reivindicando para a Franca
. ., , .«.'iifOfí::>fjr' í;n /í/jb Bljg B glfii
a prioridade e autoria, nos descobrimentos am-
canosj sao apenas, na completa ausência de pro-
:ir; i;in ■<<) vf/ om ;f)^ o '>ríf;ri;!b i;; Wy!^ cnra7f;r{
vas documentaes, as conjecturas cerebrinas ou
os erros chronologicos. Úm geographo francez,
nosso contemporâneo, n'uma obra consagrada á
historia da geographia, proclama apenas como
dogma de fé, como sendo superior á demonstra-
ção c á prova experimental ou deductiva, p fa-
cto de que Qsdieppens,q^,je|Ti verdade se haviam
antecipado já em i 34G nas difficcis navegaç5es
da costa de Guiné. E, porém, tão diminuta para
elteá^^ihíjilirtàhòía d'éstè feito dá'sua flà'ôãcy,-gi:^fitt^
dioso e memorável se lora coniprovadô, dúé ápe^
VASCO DA GAMA 20
nav
nas lhe consagra algumas linrias. E por conciliar
-uoob ijxubbí; [n''^^ ^Dxtjjíijvií btJionin-jríD ri(ii']íw
o favor a sua pátria corn o louvor die extrannos
o'iq .(jorií/ioarni^irio:) d liinriíjJadua rniJí^bi ojn-jrn-
ivegadores,. como quçm tem em pouco preço
^iiorgoq o«ljií tj iAjBnUvjq ílu-^d snco nurÁuilo^
no meio. ae tantas glorias verdadeiras mais esta
MO ofjqiíiooí olírjfinrjíJiirrmgb ií;pvDgaji_a-íy om
folha de murei, accresçenta desde logo: «Mas es-
tas navegações do século xiv, que escaparam a
notiííia dos demais povos maritirnòs, ficaram sem
'\vyuA[i(yú\n j/u^q (_>bi>^u'ibi;ríj í:íi;í ;j.(í„<lk\l;Uj^ijj
resultado na serie qos descobrimentos. Lom elias
-o><rId^í!'jJ cfij^u^U <>b >.i;Jiíi>in !'\i , :■ . ^o^/Hj.Í . -:o
nao padece o. mínimo desdouro a gloria do prm-
:j>c<Ah ,.^Kík) <■! ^)b '(Oq (jbní;r^>Jia D^dl}! 'Jhi-jO
cipe Henrique, promotor das primeiras emprezas
rrilkorriJ>.-t nnf-iJLi ", ^Jn JíÍ:Ií..í -jiIji.q n ......
da sua nacao . . . Nao ha outros descobrimentos.
que mereçam este nome, senão os que assigna-
lam a sua data na sciericia'».
Mais bem mimosos da lortuna parece, poreni,
--o'iq -jb j;ivJ!i>-^iJ/; Li'j\funo'j Lfj .ii;ni;qj; oiid .rfoajij
haverem çido ja duranje o século xiv os mariti-
uo .<AnnO'j\:.j yi^iuVjiJiíUYj ?a\ ^;^i;lrtyfqfjaQb o//
mos exploradores, partidos ae Portugal. £.m la-
.Xíjjjii;";! ■'rlnj;-i;-^.íjo ,rn J ^oú^^íoI.. í-m; ^íf: >i/r!j ^o
ce de documentos, que se afiguram insuspeitos,
não ê hoje temerário o a dm ittir que já antes
ir: - -jjfioqfj i,míjbo'iq fBÍfíqxi'i§03^ x;b SAiord
)bn38 ornoj
^, ;. •;: .!,L'jl -. i-Jnorni-jpq/.a i, /ui'.'^ .., , .,..
I «Mais ces navigations du xiv siecie, inconnues aux au^
tres nations mántimes/résterent saris VesúhátspÒ la
suite dos découvertes;'la gloire du prince Henri, pronio-
teur desipremières entreprise? dt sa iiatlDn)(n'e9.-r/eçQJf.
aycune atteinte . . , U n'y a de découvertesréellesque çel-
les qui prcnnent date dans la scieqce.» Vivien de Saintr
Martin, Hist. de la f[éof^.^ pag. 3o6.
202 VARpES JLLUSTilES
•
dp .i,?44 navios pp^iugueze3 .toja^fítJesgoberto
o f,^chip,(^lago da^ .Qíliiariasw ph irr\n\n7j n sr^
,,jÇ, sajt),i40] ,que (jyuiz.dp Hespanha^iiieto lio inr
fa,]3ff(,>(fl^ ^Gp.,stel(ia,I). P<^nando:e bisneto de el-rei
Dj.fA,fl<píisp, ÇQgnpjaaii-iado o sábio, achando-se em
Aviphão, onde tinha, então a , çôrte pontifícia o
pap^jClçmenteiVI,. alcançou da sua fácil aiuniíir^:
cençia p djOn]ii>ip.Te,,iSol;)er^uiia d^is ilhí^^iíAfQrtjJh
cijPi^yd^. fçrtuf^a. ^arlli^jçQ^istituido o principado
cm^-feviido.,dgL §an]t%Q^^ome(íiaAite,fi>/paganiento
de quatróçentios florins dcfoiro de lei^ em nipeda
florentina. E para que não ficasse em concessão
infryctuQsa enqmjiiiaj f\ r^ay» lejnçerti^ soberania,
esc^Tf ¥e^i^j,9r;P^pa ^i; 'muiíps/,cíop^,rei&: d-ai^bris^m.
dade para que a D. Luiz dessem favor e auxilio na
empreza de conquistar o archipelago. Mas o rei
de Portugal,' qiíe então era Aflbnso IV, respondeu
a Clemente VI em Úaa]^ historiando largamente
'jn[-igr.u p' jnBJ8Íx3 aaioiupniqoTq if};
?,oh;o-'. -.orí btí :i-!rr^j./íd(T^ ''ÍFjiborrim"
\}/[3iÇ^áQy ^iietnorias para a historia das navegaçòí^s e
descobrimentos portugueses^ nas Mem. da acad^ tom. vi,
part. I, pag. 49. Macedo assigna a data de 12 de fevereiro
de 1345 á carta, que transcreve de Afíonso IV. Mas Raynal-
do^.deç^ujíi obra copiou o documento, attribue-lhe a data
de 1844. Ve;. Raynaldo, Annales ecclesiastici continuati,
VASCO DA GAMA 20
que nos aiinos passados maiidái^a suas gentes c
navios a explorar as ilhas Afortunadas, ou Caná-
rias. E mais dkfáW 'n1ÓnáT(ília'^^ que
fora seu intento, depois d€^:eí' k^òlt^da à fifimei-
ra expedicãõy o 'iéhviar 4 t:òri<í][tíista d^aqúellas
terras grossa áfttíada.Dò qual propósito o inhi-
biram as guerras, em que logo depois se empe-
nhara èom os mouros éós castelhanos. A carta
latina de D. Affónso IV foi elíti^ahida dos archi-
vos do Vaticano e publicada pelo oratoriano
Odorico iRâynaldo ttâ continuà<;ão dos Aniíaes
ecclesiasticos á6 càrdéál Cesár B'átòfliò'^ Se
houvéssemos de prestar inteiro credito ao anná-
lista e tivéssemos certeza absoluta de qúe o do-
cumento poiíeile publicado seja aúthentico C gc-
pa tíiz exj)re9samente o rei de Portugal: «nos vero ^t-
tenderites quod pmedíctíe insulai (Fortunata') nobis plus
quam alicui principi propinquiores existant, quaequc
per nos posscnt eommodius subjugari: ad hoC óculos
direximus nostne mentis; gentes nò^tVàs et nhvéstiliqucts
nisulas accédentes tahi homines qiiani aWimalia et rcs
alias per violentiam occuparunt et ad nostra rcgna cum
ingetiti gáudio apportarunt».
I Rainaldi, Annalcs ecclesiastici carditu Cães. Baronii
continuaii. C>)lonia Agrippina, 1691, tom. iv, pag. 212.
204 VARÕES ILLUSTR1<:S
nuino, ficaria manifesto que já na primeira metade
do século XIV os portuguezes tinham dado feliz
começo ás expedições gloriosamente continuadas
no século immediato. Poderia porventura arguii-
sc que Raynaldo passou na commum opinião por
demasiado crédulo e de critica fácil e pouco
auctorisada. Não é porém plausível o presup-
por que em assumpto, que nada importava á
dignidade ou ao interesse da egreja ou do pa-
pado e unicamente redundava em gloria de Por-
tugal, forjasse um diploma e o estampasse como
copia de original existente nos archivos pontifí-
cios. Se, porém, se podéra contestar ao anna-
lista a veracidade e boa fé, outro monumento
podéramos invocar em favor de que os navios
portuguezes visitaram as costas africanas antes
de meado o século xiv. É um documento, que
faz parte de um manuscripto original do es-
criptor florentino Gio^'anni Bocaccio, o cele-
brado auctor do Decameronc, e foi publicado
cm 1827 pelo professor Ciampi, de Floren-
ça ^ N'aquelle precioso achado se contém a
1 Monwnenti di iin jiianitscritto autografo di messer
Gior. Bocaccio da Certaldo trovati ed illustvati da Sebas
tiano Ciampi, Fircnze, 1827, citado por Macedo, Addita-
VASeO DA GAMA 20 5
noticia- de' úima '^xpçdkáoi i maival • saída de Lis-
boa no i*^ de julho' dè"i^?4i', aparelhada por
cl-rci de Portugal, cm demaáda; das- ilhas Gana-
tíu», I que segundo-^' ákan-m^sGripto se diziam jd
d''ãnte^ descoberias. Qonstciyiv ^(\uq\\sí frota de
duas naus bem abastecidasid deuma embarca-
ção de menor lote. Iam n^ella florentinos, geno-
vezcs, castelhanos c outros hespanhoes, que
assim n\iquelle tempo genericamente se nomea-
Varh todos os naturaes da Península hispânica,
ou fosâem porti^guezes, castelhanos, ■ aragone-
zesiou catalães. Em riovembro do mesmo an-
no estavam os baixeis de volta a Portugal, tra-
zendo quatro indígenas e vários productos das
ilhas Afortunadas ^' Da narração compendiada
no manuscripto latino de Bocaccio, segundo as
novas, que de Sevilha transmittiam a Florença al-
rrtèiitfyS \d primeira parte da memoria sobre as verdadei-
ras epochas, em que principiaram as nossas navegações e
dascobrimentos no Oceano Atlântico, nas^V<?m. da acad.
real das sciencias de Lisboa, tom. xi, pag. 1 77 e seg.
I Macedo, Additamentos, etc, pag. 178-179. Macedo
transcreve o manuscripto latmo de Bocaccio a pag. 220
e 22 5. O ms. tem por titulo De Canária et insulis reliquis
idtra Hispaniam noviter repertis. i m
206 VARÕES ILLUSTRES
guns mercadores doesta republica ali domicilia-
dos, consta que a expedição navegara sob o
mando de Angiolino dePTegghia de^Gorbizzi,
florentino, levando por capitão de outro navio
a Niccolozzo da Rcccho, genovez. Se o teste-
munho de Bocaccio se ha de ter em grande
conta, podemos concluir que se navegadores ita-
lianos dirigiram a expedição de 1341, foi ella
comtudo emprehendida por, ordem e a expen-
sas do rei de Portugal, e que entre os hespa-
nhoes, hispani, de que se faz menção no docu-
mento, iriam certamente portuguezes, sendo
Lisboa o porto, onde a frota se apercebeu e ap-
parelhou.
De que na Peninsula se conservavam tradi-
ções de navegantes, que tentaram a exploração
das costas africanas occidentaes, parece dar
indicio o chronista Gomes Eannes de Azura-
ra, quando referindo os tentames dos primeiros
mareantes portuguezes, enviados pelo infante,
escreve : «Nunca foe alguG que ousasse de pas-
sar aquellc cabo do Bojador pêra saber a terra
daalem, segundo o ilVante desejava. E esto por
dizer verdade nem era com mingua de fortelleza
nem de boa voontade, mas por a novidade do
caso, mesturado com gceral e antiga fama a qual
VASCO DA GAMA 207
ficava ja antre os mareantes de Espanha, caasy
per socessom de gceraçoõesK
Doestas palavras poderia inferir-se, ou ao me-
nos suspeitar-se, que desde largos tempos um
ou outro navegante da Península hispânica, e
principalmente de Portugal por mais visinho ao
Atlântico, tivesse emprehendido a navegação
ao longo de Africa, volvendo logo sobre seus
passos, demovido pelos perigos e terrores do
Oceano.
' A7Airara, Chron. do descobr. e conq. de Guiné, cap. xviii,
pag. 5o.
l/^ W
Up ííO OBOl
CAPITULO XIV
AS NAVEGAÇÕES E DESCOBRIMENTOS
PORTUGUEZES
DESDE O XV SÉCULO ATE VASCO DA GAMA
Por meio destes hórridos perigos,
Destes trabalhos graves c temores,
Alcançáo os que são de fama amigos
As honras immortaes, e grãos maiores.
Camões, Lusiad., vi, 95.
Dc quanto deixámos enunciado podemos con-
cluir que antes das navegações e descobri-
mentos emprehendidos pelo infante D. Henrique
tudo o que se refere de viagens realisadas por
navegantes christãos e europeus alem do cabo
Não, sem exceptuar a que apparece consagrada
pela epistola de D. AfFonso IV ao papa Clemen-
te VI, é de tal maneira incerto e nebuloso,
firmado em tão débeis documentos e memo-
rias, tão enfraquecido por duvidas e contradic-
ções, que em nada pôde escurecer e oHuscar
10 VARÕES ILLTJSTRIÍS
O grande facto, de que só com os portuguezcs
se abriu e inaugurou no século xv, na historia
da moderna civilisação, o seu capitulo mais glo-
rioso e mais fecundo em maravilhosos resulta-
dos. Pode ser que uma ou outra galé de algum
povo navegante do Mediterrâneo saísse alguma
vez as columnas de Hercules, tentando anteci-
par-se nos caminhos marítimos do globo. Mas
todos esses tentames, se porventura aconte-
ceram, ficaram occultos e perdidos na sombra
das emprezas infelizes. E pôde dizer-se com
verdade que antes dos famosos descobrimen-
tos portuguezes a historia das navegações ao
longo de Africa é tão escura ou fabulosa, co-
mo era tenebroso e povoado de mystcrios o
Oceano.
Até ali dominava absoluta na geographia e
nos annaes das navegações ultramarinas a lenda,
o romance, a mythologia. É com os portugue-
zes do século XV que teve seu principio a histo-
ria authentica, documental e genuina.
Gomo nasceu porém no espirito de Portugal
esta generosa e incessante aspiração para as
terras afastadas e para os mares desconhecidos?
Não foi certamente a influencia das rodas celes-
tiaes ou dos planetas, segundo a crença astrolo-
VASCO DA GAMA 2 I I
gica de Azurara', nem a divina inspiração, se-
gundo a menção dubitativa, meio sceptica de
João de Barros 2, quem inclinou o animo empre-
hendedor e bellicoso do Infante D. Henrique a
intentar e proseguir a exploração das costas
africanas. As navegações dos portuguezes, ainda
que originaes e espontâneas, eram todavia a
consequência necessária da particular situação
de Portugal, das suas relações agora mais que
nunca frequentes e animadas com a Africa se-
ptentrional, do conhecimento e combinação das
noções embora vagas, proveitosas, que a anti-
guidade transmittíra c que o renascimento das
letras clássicas tornara mais vulgares aos espí-
ritos selectos e das noticias c informações colhi-
1 «Mas sobrestas cinquo rasóes tenho eu a vj (sextn)
que parece que hc raiz donde tòdallas outras procedem
c isto he inclinaçom das rodas cellestriaes. . . Porem vos
quero aqui scrcver como ainda per pungimento de natu-
ral inlluencia, este honrado principe (D. Henrique) se in-
clinava a estas cousas.» Azurara, (J/iron. do dcscnb. c conq.
de Guiné, cap. vii, pag. 48.
2 «Alguns quiserão afhrmar, que como era principe ca-
tholico e de vida muy pura e religiosa,' esta empreza
mais lhe fora revelada que perellc movida.» Barros, De-
cãd. I, liv. I, cap. II,
2 12 VARUES JLLIJSTRES
das entre os árabes, depois que a praça de Ceuta
fora das armas portuguezas subjugada. A contí-
nua e fructuosa applicaçáo do infante D. Hen-
rique á cosmographia é attestada pelo veneziano
Cadamosto e por João de Barros, que attribue
como fructo a esta sciencia, cultivada pelo gran-
de promotor dos nossos descobrimentos, o ter
a coroa de Portugal o senhorio de Guiné e os
demais titulos, que mais tarde lhe accresceram'.
Minuciosas perquisições effeituadas com extre-
ma diligencia e perspicácia precediam as primei-
ras navegações dos portuguezes ao longo das
costas africanas no Oceano. Alem de que D.
Henrique aproveitava o que os antigos e os es-
criptores da edade média escreveram e especu-
laram acerca da geographia, colligia com singu-
lar curiosidade quantas noticias lhe podiam advir,
interrogando os que tinham viajado por diversos
territórios, principalmente pelo sertão de Africa.
Era assiduo em inquirir dos mouros africanos
quanto sabiam a respeito das regiões que de-
moravam mais distantes do reino de Marrocos.
Por elles alcançou valiosas informações sobre
Barros, Decad. i, liv u, cap. xvi.
VASCO DA GAMA 2l3
OS árabes, que habitavam nas cercanias do Sa-
hara, e dos povos tjiíè^^éstanceavam nas ter-
ras 'de -Guinés Se confiamos nas palavras de
um navegador contemporâneo, Diogo Gomes, e
nas de Jeronymo Munzer, o infonte D. Hen-
rique sabendo que o bey de Tunis mantinha
commercio c permutação com os paizes inte-
riores do continente africano, principalmente
com Timboktu, mandou a Tunis seus pró-
prios emissários, e colhendo satisfactorios es-
clarecimentos, se resolveu em tentar pelo Ocea-
no o que os tunisinos por meio de suas cáfilas
realisavam no deserto-. Os venezianos tinham
fundado feitorias em Tunis e celebrado com
o sultão Monsaid um tratado de commercio
e d\aquella cidade encaminhavam suas carava-
nas ao interior do continente^. É possível que
o infante para completar as suas inquirições
aproveitasse o que doestas jornadas terrestres
1 Barros, Dccad. i, liv. i, cap. ii.
2 Ilieronym Munzer, De invcniione Africae mcridiona-
lis, pai;, (k), cit. cm Pcschcl, Gcsch. des Zcitalí. der Knt-
deck., pafí- 72. — Diogo Gomes, em Sehmcller, Valentim
Fernandes, etc, pag. 19 e 21.
^' Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Kntdeck., pai^. 5().
214 VARÕES ILLUSTRES
e mercantis podesse de Veneza derivar. D. Hen-
rique tinha, ao que parece, nos portos da Bar-
baria entre os próprios naturaes alguns, com
quem mantinha correspondência e de quem re-
cebia apontamentos sobre assumptos relativos
ao interior do continente ^ Ao passo que os des-
cobrimentos se iam adiantando ao longo das
margens africanas, nos saltos e incursões po-
diam os navegantes haver á mão alguns indi-
genas e os traziam a Portugal. Interroga va-os
o infante, para d'elles alcançar novas noticias,
ou corrigir e additar o que de outras fontes
lhe constava acerca das terras africanas. E com
estas informações lhe era possível indicar aos
seus navegadores, quando de Sagres os despa-
chava, o que em certos pontos do litoral, ainda
não explorados, haveriam de encontrar-.
Não podemos sem oílender a boa critica, c
por exaggerar absurdamente as glorias portuguc-
zas, contestar que o infante, ao começar a sua
1 Diogo Gomes, De prima inventione Guineae, ed. Sch-
mellcT, nas Mcm. da acad. das sciencias de Mimich. ií^3S
pag. 21.
2 Azurara, Chrou. do dcscobr. c conq. de Giiinè^ cap. lx,
pag. 278.
VASCO DA GAMA 2l5
cmprcza, de quantas cartas geographicas produ-
zira a cdade média, houvesse consultado as que
lhe podessem vir á mão. Não é crivei que tão es-
tudioso inquiridor das cousas de Africa cifras-
se apenas em Strabo ou Ptolemeu tudo quanto
lhe era útil aproveitar em relação ao Atlântico
e ás terras africanas. Acerca do interior do con-
tinente ao sul do Sahara servir-lhe-ía porven-
tura a carta catalan de iSyS, na qual já vem
assignaladas as cidades de Timbuktú e de Mel-
li, e uma região já conhecida pelo nome de Gui-
nea'. A configuração da Africa austral appa-
recc já delineada com alguma, posto que mui
grosseira, approximação á forma verdadeira do
continente, n\ilgumas cartas da edade média,
principalmente na de Marino Sanuto, de i32o.
De todas as cartas porém a mais exacta c a
que melhor poderia adequar-se aos intentos de
D. Henrique seria a do portulano da bibliotheca
laurenciana de Florença, publicada em 1827
pelo conde Baldelli Boni, assignando-lhe a data
de i35i, SC porventura em presença dos repa-
ros e objecções do visconde de Santarém, é
1 Pcschel, Gúscb. dos Zcitalt. der Kntdcck.. png. 5o^
2i6 var5es illustres
plausível ^admittir qtiè èète^móilúillentb^cárto-
graphico é anterior aéá nossos primeiros desco-
brimentos africanos K Se o infante porém tíotíhc-
ceu e aproveitou as cartas mencionadas, a qiiie
o infante D. Pedro trouxera de Veneza, oti' -a
que, segundo o testemunho de Galvão -, eícistiti
no mosteiro de Alcobaça, sempre íica manifesto,
que nenhuma d''ellas, ainda que prestando cla-
rões débeis ás noâsàs expedições, poderia' aS-
signalar c dirigir as derrotas dos nossos ma-
reantes atravez de mares de $corih(3 eidos e ainda
virgens de ousadas navegações^.
Que nos prinieiros tempos dás nossas náuticas
façanhas não eram os portuguezes, d^entre todas
as gentes navegadoras, os mais experimentados
c professos na scienCíít-è!''Urte de navegar, o
testifica a notável circuittstánòia debique' í)^fí en-
rique attrahíra a grande cu$'toã^ 'Portugal o"
malhorquino mestre. Jacome pára èhsíiictr sua
sdeucia aos o ffidáes portugueses ^d-'aí]'/fellí' mes-
1 Vise. de Santarém, liisl. de la Cost)u et de la Cario-
gr.,, m, pag. 70-74.
2 Galvão, Trat. dos descobrimentos,:
3 Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Entdeck., pr.u. ^ , ,
VASCO DA GAMA 217
ter}._, Op;çataláes eram por aquellcs tempos no-
táveis navegadores no Mediterrâneo. As cartas
marítimas eram tão vulgares n'aquelle povo,
que já no século xiv todas as galés de Catalunha
eram por lei obrigadas a trazer a bordo dois
exemplares d'aquelles mappas-.
Se bem os portuguezes não fossem, d"entre to^
das as modernas nações marítimas, durante a
edade média os mais insignes na cosmographia
e navegação, na qual se lhes avantajavam certa-
mente os venezianos, genovezes e catalães, não
se pôde constestar que o seu poder naval foi
desde remotos annos mui crescido e accommo-
4ado ás emp rezas militares e mercantis. Os do-
cumentos e as chronicas attestam a cada passo
que a marinha portugueza já desde os tempos
de Sancho II se distinguia honrosamente, quan-
do nas grandes potencias navaes' dos nossos dias
mal transparecia em ténues rudimentos uma ar-
mada nacional. Os navios portuguezes, assim
como os hespanhoes, segundo a insuspeita affir-
mação de um illustre archeologo na\al, sobrele-
' Jiíuros, Decad. j, liv. 1, cnp. \\i.
■> Lclcwcl, Gcoí^rapli. du moycn ágc, tom. u, pai;. 3;.
oit. cm l^cschcl, Gesdi. der Erdk., pap. ic)3
I'»
2l8 VARÕES ILLUSTRES
vavam em grandeza aos? das outras eaqõcs con-
temporâneas ^ Em Inglaterra no tem;po de Hen-
rique III os navios de guerra não- jôxcediam a
lotação de oitenta toneladas?; Em tempos de
Sancho II um grande navio píortuguez;; apresa-
do por inglezes foi encorporado icomo um va?
lioso subsidio na armada real de Henrique, 111?^^
Já n^aquelles tempos existia em Lisboa um arn
senal de construcções marítimas, e o engenhei-
ro naval João de Miona, que, parece todavia
pelo nome não ser porventura portu^ws^Z^oMai.
galardoado pelo rei AíFonso^..íIII .porque lhe
havia construído uma grande nau^; E porém
Diniz, o lavrador, quem pôde com rasãp ap-
pellidar-se o primeiro e mais afortunado pro-
motor da marinha portugueza. Parece que se
os nossos nacionaes andavamiiíjái^tndureridps
. -fjiiiJi^j coíL ouiàom Bbíúpi t) eonxjix\í)ri-j
1 jal, ArcítMogtt návalè,PMs ífe4(j/"íi;-i>íigji3ld;>'i '
2 History of royal navy, i, 1^2-iii^. Londres, 1847, ^i~
tado em Prin^ Heinrich der Seefahrer und §eim i^^it (o
príncipe Henrique, o navegador c o seu tero^o),.por| Gus-
tavo de Veer. Dantzig, 1864, pag. 11.
3 History of royal navy^ i, 18S.
4 Quintclla, Annacs da marinha portuguesa, i, 1 7. Lis-
boa, i83(j.— Brito, Monarchia lusitana, tomjiiK^Mv.,oi:vi,
cap. xii.
VASCO DA GAMA 219
e afeitos ao -trato do Oceano, como o haviam
denhònitraí^roi desde ajiíifaácia da nação, min-
guavai^'elles em certa maneira o saber e com-
petência para o mando supremo das armadas e
para o governo dos navios. Porque n^esta edade
v«iu servir a Portugal o genovez Manuel Pessa-
gdò i ou iPessánha, a quem D. Diniz assoldadou
pOr fáílmíraiite,! deolairando em sua geração here-
riâditario o alto -officio, e impondo-lhe a obriga-
çáo''ide' tep sempre ao serviço de Portugal mais
vk\XQ genovezes para serem os arraises e alcai-
des díis galés** Qualquer que seja a admiração,
q'tté nos mereçam os nossos denodados e peritos
navegadores na edade heróica dos nossos des-
cobrimentos, é força confessar que nos tempos
anteriores e ainda nos. princípios das nossas na-
r€gáç6eá, Portugal reconhecia nos genovezes,
venezianos e ainda mesmo nos catalães uma no-
tável superioridade na arte de marear e no man-
do das galés e das armadas. O contrato de
D.' Oiniz: còtri o almirante italiano prova sem
possível objecção que tal era n'este ponto o sen-
I Quinteila, vl«Mae5 da marinha por tu gue:^a, iq.—M^-
ccáo^ Additamèntos, etc, nas Man. da acad. real das
scienciaSy tom. xi, part. 11, pag. 22G e 23o.
220 VARÕES ILLUSTRES
tir do monarcha trovador, , tão illustre imitador
;■■!;:; -<■,;;;: Mj^q ' ;" Ml i'iíj flOÍI ! -■ -'j;;H[> ^Uíl
da Ivra provençal como zeloso administrador c
-"li- ^- .j .rj\ '^í^fUíií 'luq aoiJíiJfiííaojqDi líiur.)
estadista. Mais tarde, quando eranirjá sazonados
d'elles aprendêramos na infância das nossas
aventuras. Fomos nós os que segundo. testemi^-
nhos insuspeitos, mmisg;^s jos^^dçij^^^vc^s
^ 'í?^fepE 4MÇ^8'if %S?^?^l^Ç.PÍ^fir
feliz applicacão. Se o infante D. Henrique. não
foi, como o assevera o clássico historiador das
mathematicas, Montucla^, e^ antes d'elle p, affijç;
mára o cosmographo portuguez P.iiiiep,^ç,l2^^o^^inj-
ventor das cartas h3^drographicas pl^as^ e ^e
o principio fundamental ^^(^^,.^uíj^^ Ç0jqs||:uçjj|0j,j^
encontra já na Geographia de P,tple^^}j^^^^,jqpio
se pôde todavia contestar qvje,i,^,,njieditaç5eíS c
diligencias do perseverante solitapioi do promon-
tório sacro se deveu o incitamento para que se
I Montucla, Hist. des mathémaíiqiies, p^^rt.jj;^ IJK^vJVj
3 Stockler, Ensaio histórico sobre a origem e.progres-
sos das matJwm. em Portugal. Pnrís, 1819, png. T02-T04.
VASCO DA GAMA 22 1
íJelineassem os mappas, até ali desconhecidos,
nos quaes os meridianos e parallelos appare-
ciàm 'i^épresentadós por^^I^^ rectas, onde a
ciWvá traçada por urii nàviò, seguindo sempre
o ffiesmó rumí^^^se podesse egualmente figurar
por um traço rectilíneo*. E tao adiante dos
ôtiiros poVos, ao sair da edaae mediâ, e ja em
plena fenascèiTça, foram sempre em assumptos
de navegação os porfuguezes, que a primeira
ihvéstígaçáo dás propriedades da loxodromia,
òú cíà" cWvÀ, descripta pelo navio, cortando
os meridianos segundo o mesmo rumo, foi de-
vida "à^^^èdrò Nuríes,'um"illustre portuguez, e
um'dbs'rtiais celebres geómetras do século xvi.
Foieguàlmenté aos portUguezes e aos hespa-
nhoes que as nadoes maritimas deveram em
grande parte o conhecimento das principaes
corrente^ Miilas^:^^^^^'^^^
Forkril' ^'ortiigdéiès navegantes os que pri-
rn^ítò' dbsíióbtóirám que' às 1^^^ isogonicas, ou
- -j';:^ !í.'i ^ ■írí'jrf(/>Iijni < < ■: ,.■
1 Stockler, Ensaio liist. sobre a orif(. c prosar, das
math., pag. io5. w.>\)^ ,
2 Pcschcl/Jesch.derErdk., introd., pag. xri. «Dic Kcnnt-
niss der bctrachtlichsten'!Meeircsstromúngen vcrdankt-
222 VAROtíSaíLH^STÍiÉS
BiílífélM^têM cftteáJpuperid^â^do glaboné a mes-
ma a declinação ou variaçãcriída. agulha 'jmagne-
íitíâ'^' ¥íãò I Sâo^^íziliéiiilos^iméHdíándSj^sqnráxDí curVas
'de ''fó!Mâ irrègulat' e dupla' cu^vatum*^' Assim
tófàni ' pòrtLiguezes os que iniciaram' i .á serie
de portentosos descobrimentos n^ésta' provinda
da physica do globo, o magnetismo^' teirrestre^
fiâfeídâdáf ' tétí^Cr 'mmiCW^dJâsá^ o ap primeira- . caírta
m^ghéúi^Úb éèlobradõí astronomoi Halley^ em
f ^(56,' ' é''a de Hailstèbn de h 7 ^o até os trabalhos
mais perfeitos de Ermann, de Barlow, de Hum-
boldt, dé Gauâs, de Lamont, do general 'sir
Èdi^aMiSabinédodeeulo presente. í)'í ma ombi:
-jrí|^rfviziílhânçà''!d<2)sí;«lioui^os^ que infestavam as
ítiDstaláideí^ Portugal, e a guerra, que com elles
ií^azlalTiõs dempré accésa com ínaior ou menor
-ííilfeilsidade já depois de libertado o nosso terri-
todo, obrigava a qtíe andassem armadas portu-
guezas cruzando os nossas mares, não só para
guarecerem o paiz contra os saltos e incursões
dos musulmanos, senão também para defende-
■■rníP.uD mo d, oí .rn-jV,
* Acosíãyhisloría mxlwaly inòraí ^h las lihiian, II v. i,
tíap. xVii. — Peschel. Cescli. dcs Zeitalt. der Knldcck., pag.
VASCO DA GAMA 220
reiíi os navios nacionaes, que em trafico mer-
came seiOGGupavam^.í
Em tehipos de t). Diniz e talvez em reinados
antecedentes, impendia aos judeus a obrigação
de Gontribuirem com uma boa amarra para cada
navio, que de novo se construisse para serviço
das armadas ?'^íí3n^Brfi o ^,odoí^ ob BDizyriq j ■
jj) Eraoif^áin^^^quellti tempo extensas e importan-
tes as {)esCarias nos mares de Portugal e longe
d' elLes.nasr. costas, (^aiGtLinrJSrêit^ha e Norman-
dia^l!. ob /7/ohr>fí sb .n^nm-^^ oo>
' Bj!ni;i35'3 era já tão considerável o trafico ma-
rítimo entre Portugal e a Inglaterra, que as ci-
dades do Porto e de Lisboa celebraram um tra-
tado de commercio com o rei Eduardo III K Já
em tempos de Alfonso IV e de D. Fernando os
portuguezes das costas do Algarve^ se aventura-
vam ocom fervor á pesca da baleia. Era tal o pro-
i- Quinteila, Ahnaes da marinha poriugiic^a, pag. 21.
? João Pedro Ribeiro, Disscrt. chronolog., tom. iii, pag.
<ji c seg.
3 Quintella, Annaes da marinha portuf^iia^a, pag. 22.
4 Rymer, Foedera, tom. iii, pag. 264, citado cm Gustav
de Veer^ Prmf Heinrich der Seefahrer, pag. 3i.
5 Constantino BotcUio de Lacerda Lobo, 3/e;;;orm so-
bre a dccadcncia das pescarias em Portuf^al, nas Memo-
2 24 VARÕES ILLUSTRES
r. '-' A í/i Aí) AO. 00c:/ ' . _
gresso c o luzimento da marinha mercante por-
ttígiiie/.a J qèe 'o' réi D'/'Fèmári^c^,^èíit'f 8^¥Más' pro-
vídeiiéias éíh t>'èhefitio do'trafi'co MVdl, débretòu
em: Lisboa a primeira instituiçao^dè s^gutos ma-
riititnosi^^qii^-M" Eút^él|)a''se estabeleceu*: Eni s^u
pdtiaídGí^^~^e>'táfpg)ar<élh5i4' tittk^â^í-mada cerfárriente
iTiúi grôs^àl|3Mrá"títibéll^ t^kipòMi'á'(^uá^
dG'\íili*é'é \3liná' gèi\é^l,^'^ktró naus e tiriíá galeòta,
com seis mil homens entre marinheiros e soldados
para que ao mando do conde de Barcellos fosse
ao encontro cía esquadra castelhana ^ N^este rei-
fiado, que nao íoi certamente dos mais felizes e
dos que melhor abonassem a monarchia, o por-
to de Lisboa tinha ia um movimento considera-
vel e nas suas aguas se contavam em muitas
epócfias do anno mais de quatrocentas embar-
cações afora as que somente navegavam pelo
Te)o\ A famosa expedição Contra Marrocos e
a tómãda^de Ceuta, principio e berço de todos
Tõh l.i;rinfbii')rn oToxuiiQfcrnt .arr oii^Jsí^b
r/í?5 económicas da academia real das sciencias de Lisboa,
tom. IV, pag. 33o.
,),i Fçrnão, Lppcs^ .Clmmica de D. Fernaudo, cap» xc.
rn ;^i'^Q$mOj\çiç>mpQ\rpnkaf4£íiD^xFmmando)^íca^. cwiv-
çx]íy;í*(i '3 Tcrn ob o^i/jq orr oinfit 'TB'}(Oí2n9 9? n ?ob'
3,Peschçly iGescÂ. des Zeitalt. der Entdeck., pag. 45.
VASCO DA GAMA 225
os ^çscobriinenl;os.fÇ;,faç£^n|has navaes .dos poií"?
tugue/^ç^^, jlO^Qu,,^,^ : JpftQ,iJ,i-jj|i>^ ,açmftjia; ,tóQ
ha,ç^í:,^z^,il(?,,ç^RÍP .çjpg i>fi>íÍP^w.4r|)r(èvaMfel;q"í*Q
não^jlf^^^eg^j ^pierp^^í^q^ díjijcpj^nta ;g^lé^,;>e; . j^inta
"a^jÍLil^ii5Í9s^ií^íVyÍ9ftiíí?j§npí;ç^ ír^spojj^
^^hvAjlo^- '^ r',(/íit>flníicfn jiint^ fefiL>mòfl lirn ^íJ?, rncrj
No pnnciDip ,de, suas .maridmas emprezas
^■:<<)t <rii\\tiyir.a ob sbnoo ob 'obn/jm ímí oup in/^q
eram ainda os portuguezes tão pouco . experi-
1)1 ol^-j /. .^:jr'.í,ni-;j':;T i.jbcijjjrío íí> 0'1'rMoj.r. -;
mentados e scientes na navegação do alto niar,
que as suas singraduras as faziani çpsèndo-se
com a terra sem nunca se aventurarem a perder
de vista o litoral 2. E verdade que eram ainda
muito menos afoutas aos perigos do Atlântico as
outras nações navegadoras. As falsas , opiniões,
herdadas dos antigos e cada vez mais forte-
mente roboradas pelas superstições geographi-
cas da edade media, exerciam a principio o seu
mfluxo deletério na imaginação meridional d(^s
» Quintella, Annaâs da marinha portuíj^ue^a, i, pog. 26.
2 «E como os marinheiros d'aquelle tempo não eram
costumados a se ení^olfar tanto no pego do mar c toda a
sua navegação^era^por 'Sahí3[raduras sempre' 4' -vista de
terra . . .» Harros, Dccad. i, Ijv. i, cap. 11.
226 VARÕES ÍLLUSTRES
navegantes portuguezes, os quaes ao tentarem os
caminhos do Oceano o phantasiavátri''Jl)ovó'ádo
de perigos e de terrores, inlpérvioe in navegável
ainda aos mais ousados mártilheiro's^. Acredi-
tavam com os antigos e com os mais illustres
sabedores da edade média, que a Afriôâ^ihfer-
tropical era deserta de gente e vegetaeá 'iè 'qiièf
as aguas do Oceano pela exigua profLiri(íe^ái''a
pouca distancia das suas margens, ríão dariam
logar á navegação^. -'^ ^^^P ^i^^^P'^
Ao passo que os mareantes portugútféS^se
iam adiantando nos caminhos do Oceano e áffa-
zendo-se mais e n^iais á bràViezk' 'das 'témpeéta-
1 Barros, Decad. i, liv. i, cap. h. «Concebiam que o
mar dalli por diante (do Bojador) era todo, âparcellado e
que esta fora a causa, porque os povoadores d'esta parte
da Europa não se entenderam a navegar contra aqueíías
regiões.»
2 «Isto he claro, deziam os mareantes, que despois destc^
cabo (o Bojador) nom ha hi gente nem povoraçom algua ;
a terra nom he menos areosa que os desertos de Lil\va,
onde nom ha augua, nem arvor, nem herva verde; e o mar
he tam baixo, que a húa legoa de terra nom ha de fun-
do mais que húa braça. As correntes são tamanhas^ que
navyo que hi passe, jamais nunca poderá tornar.» Azu-
rara, Clivou, do descob. e conq. de Guine, cap. virr, pag, 5i.
y^^.ívA^ç^fjif, 227
dçs, ia crescçndpia, sua perícia., Ks5|is, i\\íep,t,U7
reiij'.(;)s, porén-x,. , ^ua^i ^i bisonhos ^ j^^vegaçijt^ç^, , ^xji^ç
^^r^íÇrRFs i B W^ifríf^u te;3;ipp5 , fi^j.sya^ ^jBWf^
çpes ^remianx a;ssonil?rad9?i,;.4wi^^!i^;{4o ^ç^^j^^^
Boj^çlor, .qUfin^o er.^m apenas,. dççof^idps^.pc^^^
co.$,,aníios. )á sabiam aCfibar tãq jasigne ffeii^,
qual era o de A3Tes Tinoco, o qualtendp ^pf^i^js
çonisigo qviatro gruigetes,^ volvera .desde; a Çal^o
depois que Nuno Tristão perex;êr;fiT4,S;^ãps,j4Q?í
negrosj^:^,^^ ípajjp^jjpafte da tripulação do seu
nayio^.^^f 1^,^30 ^^^^ ^iorínirii jbownBibii ítií;í
A sciencia fnayal dos» portuguczes: acompanha-
va agora a sua audácia. Bem depressa foram
elles os primeiros navegadores de todo o mun-
doií-f&í^iwãô-^^ê-^afa assombrar qué^^as deíliais
naéfee^ tiMitMá' 'da' Èiilrò^, (^miidòíriMtM
seguir e imitar as aventurai portuguezas ijas
costas africanas, venham a Portugal buscar pilo-
tos que os encaminhem na^ sendas proccllosas,
domesticas e familiares aos portuguezes, ain-
rriofr irnsl 'j[> í.ov.á i úíÍ
1 Azurara, Cliroih do descob. e conq. de (jiiinê, cap*
tini Fernandes, -p-^u,, 2 f>. "^ •
228 VARÕES ILLUSTRES
da tenebrosas, quasi impervias aos extranhos^
Os hespanhoes, que á porfia com os portuguc-
zes inscreveram nomes immortaes nos fastos
geographicos do mundo, no começo do xv sé-
culo ainda mui pouco se distinguiam pela
sua perícia como navegadores do Oceano e no
próprio Mediterrâneo não ouravam das costas
alongar-se^. O exemplo e emulação dos seus
vizinhos estimulou-os nobremente a que com
elles mais tarde participassem na gloria dos
maravilhosos descobrimentos e no império das
novas regiões -\ A tal ponto de perfeição tinham
levado os portuguezes, amestrados pelas tor-
mentas do alto mar, a construcção dos seus
baixeis, que já Cadamosto, o navegador vene-
ziano ao serviço do infante D. Henrique, di-
vulgava pelo mundo o serem as cara\ellas de
Portugal os melhores navios d'aquelle tempo L
1 Vise. de Santarém, Rcchcrches sur la découvcrtc, etc,
pag. 181-182.
2 Pescbel, Gcsch. dcs Zeitalt. der Entdeck., pag. i('>o.
^ Peschel, Geíc/í. dcs Zeitalt. der Entdeck., pag. 161.
I .l.s' navegações de Luis de Cadamosto na (Mllecçao
de noticias para a hist. e gcogr. das nações ultramarinas,
publicada pela acad. das scienc, tom. ii, pag. 3.
VASCO DA GAMA 22()
Nem admira que o americano Prescott, por-
ventura o primeiro historiador do nosso sé-
culo, escrevesse dos portuguezes «que elles
foram os primeiros que entraram no brilhan-
te caminho dos descobrimentos náuticos» ^
O eminente geographo allemáo, Oscar Peschel,
entre todas as nações marítimas nos concede
com rasáo a palma de preexcellentes e proclama
que foram os marinheiros portuguezes na epo-
cha dos nossos descobrimentos os mais intrépi-
dos nautas do seu tempos
Se o-s genovezes tinham ensinado outr^ora a
Portugal a arte de marear, quando as navega-
ções no Oceano se limitavam ás costas europeas
ou aos mares da Barbaria, Colombo, o mais il-
lustre navegador italiano, em Portugal e de por-
tuguezes aprendeu em grande parte o que de
1 «The portuí^uesc were thc lirst lo cntcr on thc bril-
liant path of nautical discovcry.» Prescott, Hist. of Fcr-
din. and Isab., tom. ii, pag. 112.
2 «Unter seiner Leitung (do infante I^. Henrique) wur-
den die Portugiesen . . . die unerschrockensten Secleute
ihrer Zeit.» Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Kntdeck., pai;.
85.
23o VARÕES ILLUSTRES
sciencia c pratica lhe aproveitou no seu famoso,
mas fortuito descobrimento ^
Quando chegou o tempo das aventuras no
mar ako, começava a entrar em sua florente
adolescência o nosso espirito naval. Mais que
nenhum povo, ainda mesmo os da peninsula,
estávamos próximos ao litoral africano no oc-
cidente. Tínhamos já um pé em Ceuta, chave
da Africa. Havíamos por assim dizer tomado
symbolica posse de todo aquelle continente,
em sua maior parte desconhecido. Tinhamos
já plantado o principio do nosso futuro impé-
rio africano e oriental. A nenhuma nação da
Europa se estava azando mais propicia a em-
preza grandiosa de atar de novo a commu-
nicaçáo entre a christandade do Occidente e os
povos innumeraveis de remotas e varias gcntili-
dades. Costear a Africa e seguir do Atlântico
ao mar das índias em demanda d'essas terras
maravilhosas da especiaria e dos thesouros, era
o grande problema, não somente portuguez, se-
não europeu,, universal, a cuja solução nos pun-
gia e estimulava a nossa ambiciosa aspiração de
1 llumboldt, Examcn critique, i, pag. 92.6 96.
VASCO DA GAMA 2^1
nos desforrarmos nobremente da mesquinhez de
território, fazendo de cada nau ou caravela aven-
tureira o throno da liossa absoluta soberania no
Oceano. Este vago e instinctivo sentimento cor-
poriíicou-se e fez-se acção no infante D. Henri-
que. Assim como a força da natureza não pôde
entrar ao serviço do homem productor sem o
concurso e prestancia de uma machina, assim
também a idca, que transforma as civilisaçoes
e que é fundo commum da humanidade, neces-
sita de se consubstanciar n^uma pessoa, como
o hindustanico Vischnú carece de uma nova
encarnação ou apatar para visitar de novo a
terra. O infante D. Henrique é a alavanca does-
te espirito Ínsito, espontâneo, habitual á gente
portugueza, romanesca e aventureira, de outras
eras. Desde a tomada de Ceuta em 1415 até
que Gil Eannes, em 1433, após muitos annos de
infructiferas expedições, consegue ultrapassar o
cabo Bojador, a perseverança, ainda maior que
a intrepidez, assegura já que essa virtude herói-
ca, essa fé inabalável nos magnificos destinos da
nação, tarde ou cedo abrirá aos nautas animo-
sos do ultimo Occidente as douradas portas do
mundo oriental. Successivamente e em repetidas
expedições consegue o esforço de impávidos na-
232 VARÕES ILLUSTRES
vegadores estender os descobrimentos pòrtugue-
zes e quando o infante baixa ao tumulo a ban-
deira de Portugal tem já íluctuado á vista da
Serra Leoa, derradeiro término das pasmosas
navegações, que favoreceu e animou.
Depois, em tempos de Affonso V e principal-
mente de João II, proseguem os descobrimentos
até que Bartholomeu Dias e João Infante, des-
cobrindo e passando o cabo da Boa Esperança,
resolvem o maior problema geographico, que a
antiguidade nos legou, o da eft^ectiva e real com-
municação entre o Atlântico e o mar das índias,
e demonstram experimentalmente a figura pe-
ninsular do continente africano. Vencido e como
que domesticado assim o cabo Tormentório, o
terrível Adamastor, estava aberto, amplíssimo,
patente o caminho do Oceano.
Era agora mister cursar ao longo da costa
oriental, e engolfando-se no pélago profundo
surgir nas cubicadas ribas indianas, e levar a
bandeira e a gloria portugueza até ás mais re-
motas regiões orientaes, ignotas ou nebulosa-
mente rastreadas pelos mais illustrcs povos con-
quistadores e pelos máximos geographos na
antiguidade. O nome portuguez, que não cabia
na pátria, teve agora para cxpandir-se toda a
YAbÇO DA QAMA 2JJ
terra. No sonho de Scipião, p5e Cicero na bocca
do famoso romano d'este nome, a quem as suas
victorias assignaram o epitheto de Africano, as
seguintes palavras dirigidas a outro Scipião,
não menos celebrado, o Emiliano, para significar-
Ihe quanto, apesar dos seus triumphos, era mise-
rável e pequeno o theatro da sua gloria: «Does-
tas cultas e notórias regiões (referia-se ao orbe
romano, grandíssimo como conquista de um só
povo, escasso em comparação do globo inteiro),
pôde acaso o teu nome ou o de outro qualquer
dos nossos ultrapassar o Cáucaso, que ali vês
ou passar alem d'aquelle Ganges? Quem nas
restantes terras do nascente, ou nas ultimas do
poente, ou do norte, ou do meio-dia ouvirá o
teu nome? As quaes regiões postas de parte,
bem vês em que limites estreitíssimos poderá
dilatar-se a vossa gloria'.» Tão altisonante como
I «cEx his ipsis cultis notisque terris, num aut tiium
aut cujusquam nostrum nomen, vel Caucasum luinc,
quem cernis, transcendere potuit, vel ilium Ganirem
transnatare? Quis in reliquis Orientis, aut abcuntis solis
ultimis, aut aquilonis, austrivc parlibus tuum nomen
audiet? Quibus amputatis, cernis profectò quanlis in an-
gustiisvestra gloria se dilatari velit.» Somu. Scipioiíis, em
M. Tullii Ciceri. Opera omuia, ed. elzcv., iCbi, pai;. i3i(j.
2.'>4 VARÕES ILLUSTRES
foi O nome dos romanos, não achou echos a sua
fama na máxima porção do mundo hoje explo-
rado e conhecido. Mas o que os Scipiões não
poderam alcançar, guardava-o o destino ao pe-
queno povo do Occidente. Ao revez de Scipião
quasi faltou aos portuguezes ainda mais terra,
a que dilatar o seu nome e as suas victorias.
N'este momento histórico apparece na scena
do mundo um doestes homens singulares, em
cujos altos espíritos e em cujo animo impertér-
rito, que chega a imperar á natureza e á fortu-
na, se vê gloriosamente accrescentada e resur-
gida a tempera dos mythicos heroes. Esse
homem ao desferir o rumo e deixar as praias
pórtuguezas, leva na sua nau o futuro da ci\'i-
lisação.
Pelo impulso do génio e do valor, eil-o que
se levanta desde a obscura mediania até encher
o mundo com a sua gloria e assombrar com o
seu nome a mais remota posteridade. Esse ho-
mem c Vasco da Gama.
CAPITULO XV
AS ANTIGAS COMiMUNICAÇOES COM O ORIENTE
Aquolias oricntacs riquezas tão ce-
lebradas dos antigos escriptores . . .
por commercio tem feito tamanhas po-
tencias como são Veneza, Génova,
Florença e outras mui grandes com-
munidades de Itália.
Barbos, Decad. i, liv. iv, cap. i.
A índia, antes de Vasco da Gama, fora já nos
antigos tempos e durante a edade média para
as nações do velho mundo a região proverbial
das maravilhas e das riquezas.
A cubica e o desejo de extender até paragens
mui remotas a dominação e senhorio foram sem-
pre o móbil principal dos notáveis descobrimen-
tos geographicos. Não é pois de admirar que a
antiguidade, tão fértil em ambiciosos conquis-
tadores, não somente por fama conhecesse as
paragens do Ganges e do Indo, senão que até ali
procurasse ampliar as suas conquistas, e inten-
'ZM) VARÕES ILLUSTRES
tasse avassallar com os seus exércitos e as suas
armadas a terra celebrada pelas suas preciosas
producções e especiarias.
A lenda meio-mythologica, meio-historica, dos
Argonautas e da sua famosa expedição até á
Golchida, é sob a forma poética de um mytho
heróico, a prefiguração do que deveria succe-
der por largos séculos, do esforço e empenho
das gentes occidentaes em unir pelo interesse
mercantil o Occidente e o Oriente. O vellocino
de oiro attrahe de longe a mais férteis e remo-
tas regiões os que anceiam pelas imaginadas
opulências das terras orientaes.
Quatorze séculos antes da era christan, Rham-
sés, o grande, o Sesostris dos escriptores gre-
gos, o segundo rei da decima nona dynastia
cgypcia, de Manetho, conduz á índia uma gran-
de armada, a qual saindo pelo Golfo Arábigo
salteia e conquista muitas povoações nas ribas
do mar Er3^thrèo^ A narrativa de Heródoto,
como tantas outras do mesmo historiador, an-
numeradas entre as fabulas por muitos escripto-
res dos séculos pretéritos, achou plena confir-
> Heródoto, HÍ6t,. liv. 11, pag. loi
VASCO DA GAMA 287
mação nos profundíssimos estudos egyptologi-
cos do scculo presente ^
Para a antiguidade clássica desvendaram-se
em parte os mvsterios da índia oriental pelas
campanhas de Alexandre, o bravo e glorioso
general dos macedonios. A índia foi para os
gregos da edade alexandrina a revelação de um
mundo novo-. A civilisação hellenica, admirá-
vel como era, não poude soAxear o espanto, que
lhe inspirava aquella região, onde a natureza
opulentíssima, com as suas formas inesperadas
e extranhas de novos organismos, singular-
mente contrastava com as conhecidas produc-
ções das terras occidentaes; onde as raças na
cor e nas feições eram diversas das gentes eu-
ropeas, onde eram desvairadas as instituições,
a religião, a philosophia e os costumes^, onde
os edifícios assombravam pela sua grandeza
monumental, c pela sua admirável magnifi-
cência.
Singular e extraordinária se afigurava a des-
cripção e o reconto das maravilhas indianas,
1 Ritter, Gesch.der Krdk. inid der Kiitdeck., pag. 11 e i3.
2 Ritter, Gesch. der Krdk. iind der Eutdcck.. p.ip. TiG.
-^ Humboldt, Kosmos, tom. 11, pag. 181.
238 VARÕES ILLUSTRES
taes como as haviam summariado em seirô es-
criptos muitos sábios companheiros de Alexan-
dre : Nearcho, o almirante da sua armada, One-
sicrito, Aristobulo, Megasthenes. E porque nada
similhante ao que diziam d'aquelle mundo orien-
tal se lhes deparava nas terras europeas, muitos
se recusavam a pôr inteira fé no que parecia des-
conforme á ordem da natureza e da humani-
dade ^ Quasi punham na mesma plana as des-
cripções authenticas da índia e o que d*'ella
fabulara Gtesias, de Gnido, o medico de Arta-
xerxes Memnon. O próprio Arriano, o chronista
grego das expedições e campanhas de Alexan-
dre, averba de suspeitas as narrações de mui-
tos escriptores^.
Náo se extinguiu nos gregos com a morte do
Macedónio o empenho de aproveitar os thcsou-
ros indianos. Os diádochos ou successores do
grande conquistador proseguem na empreza de
ligar ao Oriente as terras occidentaes. Os Pto-
lemeus do Egypto hellenisado, desde Myos Hor-
mos e Berenice, na costa occidental do Golfo
I Ilumboldt, Kosmos, tom. ii, pag. i8i.
- Arruino, l'\\'pcdiçóes de Alexandre, liv. ^', cnp. ii.
VASCO DA GAMA 2.^q
Arábigo, fazem navegar as frotas mercantis para
a índia oriental, e levam a derrota até Cey-
láo, a Taprobana dos antigos, no primeiro sé-
culo da era christan.
Hippalo, um navegador greco-eg3^pcio, desco-
bre, ou antes aproveita, em beneficio da mais
curta navegação, a regular alternativa das mon-
ções no Oceano Indico'.
As mercancias eram conduzidas desde o empó-
rio de BarAgaza, na costa do Malabar, desde o In-
do e Taprobana aos portos do Mar Vermelho, c
d'ellcs transportadas em caravanas até Koptos,
d'onde se iam diffundir a Memphis e Alexandria-.
No celebrado museu doesta cidade se accumula-
vam as mais desvairadas producções do Orien-
te. Alexandria era então a metrópole da intelli-
gencia e o centro de todo o tráfego do mundo.
No conceito do sábio Peschcl, no tempo do
geographo Ptolemeu conhecia-se infinitamente
mais da índia do que sabia Gerardo Mercator,
1 Riltcr, Gcsch. der Krdk. iiud der Knldeck., pag. 90. —
Peschel, Gesch. desZeitalt. der Eutdeck., pag. 4.— Hum-
boldt, Kosmos, tom. 11, pag. i'o5.
2 Ritter, .Gesch. der Krdk. iind der Entdeckí, pag. yo.
240 VARÕES ILLUSTRES
O celebre geographo hollandez, nos fins do xvi
século ^
Durante a dominação dos Lagides no Egypto
os gregos chegaram a fundar estabelecimentos
mercantis, não somente na ilha de Socotorá
senão também na costa do Malabar, entre Goa
e Bombaim, se havemos de acreditar no que
Arriano, ou outro grego, deixou commemorado
na antiga relação intitulada Périplo do mar Erj-
thrêo, interpretado n'esta parte pelo doutíssimo
Lassen, profundo investigador da antiguidade
no Indostão 2.
Para facilitar o commercio marítimo com a
índia, Ptolemeu II, Philadelpho, o segundo en-
tre os Lagides ou reis gregos do Egypto, fez
novamente navegável o canal, que ligando o Nilo
ao Golfo Arábigo, em tempos mais antigos fora
aberto pelo Pharaoh Nechao, e continuado por
Dário Hystaspis. Principiava o canal pouco aci-
ma de Bubastis, e terminava no Erythrêo-\
Entre os romanos não foi a índia reputada
como terra de menos extranheza do que nos
1 Peschel, Gesch. der Krdk., pag. 11.
2 Peschel, Gesch. der Erdk., pag. 11.
3 Heródoto, Hist., liv. 11, pag. i58.
VASCO DA GAxMA 24 1
tempos de Alexandre e dos seus guerreiros suc-
cessores. Basta ler em Quinto Curcio, o romano
historiador das proezas do Macedónio, a descri-
pçáo da índia, para ver de quanto a imaginação
amplificava as riquezas d^aquelle paraizo orien-
tais
Segundo o historiographo romano os rios ar-
rastam D oiro na sua corrente, e o mar borda
de aljôfares e de pedras preciosas as margens,
onde espraia as suas ondas ^. As noticias, porém,
que os romanos acerca da índia conheciam, de
fontes gregas eram principalmente derivadas.
As campanhas e os triumphos dos seus exérci-
tos na Ásia não lhes abriram, como a Alexan-
dre mais venturoso ou mais audaz, os caminhos
do Indostão. Mas os quirites, chegados ao fas-
tígio da gloria e do poder, depois de terem con-
vertido o mundo conhecido em orbis romaniis,
necessitam de todas as sumptuosidades e rique-
zas dos povos mais distantes para deliciar a se-
I Q. Curtii Ruíi, Historianim, liv. viii, n." <), ed. cl/c-
vir., Leydcn, i633, pag. 249- 252.
^ «Aurum ilumina Yohunt. . . Gemmas margaritasquc
marc littoriluis infundir. >> Q. Curtii, Histor., liv. viii, cap. ix,
pag. 25 1.
21
VARÕES ILLIJSTRES
dc insaciável de luxo e de prazer. A índia, c
o paiz remoto dos Seres, ou da China, enviam
a Roma os seus mais preciosos artefactos e as
suas mais custosas mercadorias. Quando Pom-
peio Magno celebra o seu magnifico triumpho,
após a guerra mithridatica, e depõe como
oblata a Júpiter Capitolino grande parte dos
riquissimos despojos colhidos no thesouro de
Mithridates^ parece que uma torrente de gem-
mas e pedrarias vem inundar a metrópole do
mundo e annunciarque o Oriente se desentra-
nha em opulências para adornar a purpura e o
diadema ao popo rei.
Conheciam os romanos pelas informações
dos povos, que estanceavam nas regiões do
Cáucaso, o caminho commercial, que através
da Ásia seguiam as caravanas até á índia e á
Bactriana. Do Ponto se trasladavam a Roma c
a Byzancio as mercancias do Oriente. As ex-
pedições romanas tiveram por extremo limite a
leste o rio Euphrates. Ali terminava o seu co-
nhecimento immediato da geographia oriental.
Senhoreando o Eg^^pto e reduzindo-o a pro-
víncia, Roma para compensar a perda do ca-
1 Plinio, Histor. natur., liv. wwii, cap. vi.
VASCO DA GAMA 2^.3
minho terrestre, que os Parthos indomáveis
lhe cerravam, e que seguia desde o Ponto pela
Bactria até á índia septentrional, teve agora
patente a estrada maritima, que o Erythrêo
lhe franqueava até o Malabar ^ Não eram
porém naves .onerarias de romanos as que da
índia transportavam as mercancias. O romano
teve sempre mais innato pendor para as con-
quistas bellicosas do que para a mercantil
grangearia. .
Em tempos de Marco Aurélio, no segundo
século da nossa chronologia, uma embaixada ro-
mana até á China attesta que os dominadores
do Occidente náo tinham em menospreço as
relações commerciaes com aquellc império 2.
Ptolemeu, o geographo, no segundo século
christáo conhece da índia muito mais do que
souberam os gregos de Alexandre e os Lagides
do Egypto, muito mais do que lhe podiam mi-
nistrar as informações directas dos romanos,
incuriosos de alargar as fronteiras da geogra-
phia. São numerosos os logares, cuja posição elle
assignala com rasoavel exactidão. O geogra-
1 Rittcr. Gcsdi. der Krdk. und der Kntdcck.. prií;. (jj.
2 I^cschel, Gesch. der Erdk., pag. 14.
244 VARÕES ILLUSTRES
pho alexandrino conhece, ainda que vagamente,
a região dos Sinas, ou a China meridional, e
a Serica, ou a parte boreal do celeste império;
não sabe, porém, ainda conglobal-as n\ima
só e mesma grande região ^
Da navegação de um grego aventureiro, Jam-
bulo, até a ilha de Java, não é fácil discernir
o qcie pertence á historia verdadeira e o que de-
ve considerar-se pura fabula. E innegavel toda-
via que Ptolemeu conhece no seu tempo aquella
ilha e denota-a com o nome sanscrito helleni-
sado^.
O christianismo, nascido no Oriente, desde
os seus primeiros séculos bracejou e diffundiu-
se ás extremas regiões da Ásia. Em Socotorá
encontra o monge viajante Cosmas Indicopleus-
tes, no VI século, povoação christan de origem
grega. Se a missão apostólica de S. Thomé e
o seu martyrio em Meliapor, fundando-se na
1 Ritter, Gesch. der Erdk. iind der Entdeck., pag. 124.
A respeito dos caminhos que seguiam as caravanas no
commercio das sedas, conduzidas desde a China aos po-
vos occidentaes, veja Peschel, Gesch. der Erdk.. pag.
9-J0.
2 Peschel, Gesch. der Erdk., pas:,. i5. — Ptolem., GVon;-.,
liv. vir, pag. 2.
VASCO DA GAMA 245
lenda e tradição, não sáo historicamente com-
provados, parece comtudo incontestável que
desde o vi século havia já christáos estabeleci-
dos no Malabar e em Ceylão^ Os christãos
de S. Thomé, que os portuguezes encontraram
n'aquella costa 2, e as antigas tradições, que en-
tre elles se conservavam, attestam que desde
antigos tempos os christáos da seita nestoriana
SC haviam diííundido até á índia.
Alexandria continuou durante a edade média
a ser o principal empório do trafico entre a
índia c o Occidente. Quando, porém, os ára-
bes alargaram velozmente os seus domínios, e
Bagdad foi a corte do khalifado, o commer-
cio marítimo do Oriente animou novamente o
Golfo Pérsico e Bassrah foi desde entáo o cen-
tro das relações mercantis com as terras india-
nas.
Náo se deram os árabes por satisfeitos com
trazer as mercancias da costa do Malabar ou de
1 Pcschel, Gesch. dcs Zeitalt. der Entdcck., pag. 7.
2 Sobre os christãos de S. Thomc e a sua historia, vc-
ja-se Jornada do arcebispo D. Fr. Aleixo de Meneses, por
Fr. António de Gouvéa, Coimbra ibo(), liv. u cap. i-iv,
xviii-xix, e liv. III, cap. x.
14^ VARÕES ILLUSTRES
Geylão. Com a China mantiveram egualmente
frequentes communicaç5es. Desde Bassrah c
Oman navegavam os débeis e mal seguros
baixeis arábigos até Siraf. Doeste ponto carrega-
vam os juncos chins as mercadorias dos árabes
e as levavam até os estabelecimentos musul-
manos na costa de Malabar e d^ali, sempre ao
longo do litoral, iam após longa navegação
lançar ferro no porto appellidado nas relações
arábigas Kanfu, a Campú de Marco Polo^ Era
tal a extensão do commercio n^aquelle porto, a
affluencia de extrangeiros, empenhados em suas
grangearias, que, segundo Massudi, se nume-
ravam em duzentos mil entre musulmanos,
christãos, parses e judeus". No século ix os
árabes navegavam até á China meridional, c
os mercadores chinezes vinham em seus navios
até Siraf, quasi na foz do rio Euphrates-\ NVs-
tc mesmo século nos fragmentos dos diários
de dois navegadores arábigos, Wahab c Abu-
zeid, apparecem já citadas as principaes mer-
1 Peschel, Gesch. dcs Zcitalt. der Entdcck., pag. 9-10.
2 Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Entdeck., pag. lo-i i . —
Massudi, Meadows of Gold, trad. de Sprenger, i, pag. 824.
-^ Rittcr, Gesch. der Erdk. imd der Entdcck., pag. 175
VASCO DA GAMA 247
cadorias do império chinez, o chá, a porcelana,
os tecidos de seda e o almiscar^
Náo sáo porém somente os árabes, a raça
conquistadora por excellencia, os que durante
a edade média chegam com suas excursões á
Ásia extrema. Também gentes christans en-
tram na China e fundam em vários pontos mais
ou menos populosas communidades. Quando a
dynastia Tang, que succedêra á dos Tschin,
foi dcsthronada em princípios do século x para
deixar o throno vago á nova dynastia de Heu-
liang, a tolerância, que tinha aberto as portas
do vasto império ás peregrinas religiões, con-
verteu- se em perseguição e os extrangeiros fo-
ram obrigados a fugir depois de verem posta a
sacco a magnifica cidade de Kanfú^. A China
era por aquelles tempos o theatro de intestinas
c sangrentas convulsões e as invasões dos tár-
taros recresciam cada vez mais temerosas.
Os árabes, na geral intolerância havida com
as gentes forasteiras, náo foram mais afortuna-
í Ritter, Gcsch. der Erdk. iind der Entdeck., pag. lyS.
2 Rcinaud, Antiquités chrétieunes de la Chine, em Nou-
velles annales des voyages, 1846. Octob., pag. 94, cit. em
Pcschcl, Gesdi. des Zeitalt. der EnldecU., pag. 11.
248 VARÕES ILLUSTRES
dos que os seus emulos christáos. Não podiam
agora commerciar directamente nos portos do
celeste império. A commutação das mercancias
do Occidente pelas da China fez-se entáo
n'uma estação intermediaria, a que as antigas
relações dáo o nome de Kala, e cuja situação
não é fácil assignar precisamente ^
Depois da queda do império romano do Oc-
cidente e da conquista do Egypto pelos árabes
o centro do commercio europeu com as regiões
orientaes trasladou-se para Byzancio ou Cons-
tantinopla, que pela sua excellente posição era
na Europa como que a sentinella avançada do
Oriente.
Quando na edade média começaram a florc-
cer com grande poderio e luzimento as republi-
cas marítimas da Itália, o trato mercantil prin-
cipiou de rasgar mais largos voos. Amalíi, Pi-
sa, Génova e Veneza disputaram largos annos
entre si o commercio do Mediterrâneo. O se-
nhorio doeste mar teve porém somente por in-
conciliáveis contendores a Génova e a Veneza,
depois que Amalíi decaiu, e Pisa, após uma
guerra de duzentos annos, teve de ceder á
1 Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Eutdcck., pag. 11.
VASCO DA CAMA 24C)
pujança naval dos genovezes. Ambas as re-
publicas fiadas no seu grande poder naval e
inflammadas pela cubica mercantil, buscaram
d porfia senhorear-se do commercio no Mar
Negro. Os genovezes fundam Kaíía na Criméa,
alargam os seus estabelecimentos commerciaes
até á Mingrelia e levam os seus mercadores
as orlas do Mar Gaspio. O porto de La Tana,
na foz do Rio Don ou antigo Tanais, recebe
ao mesmo tempo as feitorias de ambas as re-
publicas rivaes. Aquella estação era o ponto,
d'onde no século xiii partiam as caravanas
dos francos ou latinos para chegar até á Chi-
na, seguindo o itinerário descripto nas rela-
ções de Balducci Pegoletti, passando por Sa-
ray, a capital dos tártaros de Kiptchak, pela
cidade de Organzi, celebrada nas cartas medie-
vas, depois por Armalecco, até entrar em Ca-
mexu, a cidade Kan-ci-pu de Marco Polo. D'ali
em mez e meio de 'jornadas passavam as cara-
vanas o rio Amarello e depois com mais trinta
dias de caminho avistavam finalmente a magni-
fica metrópole Pekin ou Kambalú^ cuja ri-
I Peschelj Gesdi.dcsZeitalt. der ErJJeck., pag. 17-18. —
Ritter, Gesch. der Erdk. und der Entdeck., pag. 219.
2 5o VARÕES TLLUSTRES
queza e esplendor trazia absorto o Occidente.
As caravanas desde o Mar de Azov pela Ásia
central até á grande capital da China gastavam
cerca de um anno de jornadas ^
Para segurar as opulentas feitorias em La
Tana e o transito das caravanas, celebraram os
venezianos e genovezes seus- tratados com o
poderoso khan dos Tártaros. O mais antigo de
que ha memoria tem a data de i3332. Desde
La Tana as preciosas manufacturas e riquezas
da China, o chá, as porcelanas, as sedas, os
charões, e as próprias especiarias indianas, cujo
trato andava assim em monopoHo de Génova
e de Veneza, desde Constantinopla ^e diflun-
diam pela Europa até ao norte ás cidades an-
seaticas e ao meio-dia até Barcelona, Cadix e
Lisboa^.
Era entáo Constantinopla o grande mercado
universal do commercio do Oriente.
Os genovezes dominavam ali quasi como se-
nhores, e tinham realmente a soberania do Mar
Negro, onde a influencia veneziana teve de ce-
1 Ritter, Gesch. der Erdk. und der Entdeck., pag. 219.
2 Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Entdck., pag. 17-18.
3 Ritter, Gesch. der Erdk. iind der Entdeck., pag. 220.
VASCO DA GAMA 25 I
der á supremacia inquebrantável dos seus emu-
los.
A poderosa senhoria do Adriático, expulsa
do Bosphoro, e vendo cerrado o caminho ter-
restre pela Ásia, nSo se resignava porém a per-
der de todo o ponto o trafico do Oriente.
O roteiro mercantil da índia pelo Golfo Pér-
sico, c depois por Bassrah até á Europa, era
diííicil e tornava elevadissimo o preço das espe-
ciarias e drogas orientaes.
Em princípios do século xiv só uma pequena
parte das mais custosas mercadorias, que po-
diam facilmente deteriorar-se em mui longo
transporte pelo mar, continuavam a seguir pelo
Golpho Pérsico o seu caminhou
Transportar as mercadorias desde a ín-
dia ao Mar Vermelho, conduzil-as ao Cairo
e a Alexandria, era para os musulmanos a
maneira mais segura e expedita de fazer o com-
mercio oriental.
A extensão descommunal do islamismo pelas
terras mais remotas da Ásia, a affluencia prodi-
giosa de hadgis, ou peregrinos, que desde as
l\'schcl, Gesch. des Zeltalt. der Eutdeck.. pa
252 VARÕES ILLUSTRES
mais afastadas regiões concorriam a Mekka, a
cidade santa do propheta, tornando-a ao mesmo
passo a metrópole da fé religiosa, e o empório
dos interesses mercantis, restituiam natural-
mente ao Mar Vermelho a sua antiga preemi-
nência no trato e communicação do Oriente
com as terras occidentaes.
As magnificências do Cairo, ou Bab3donia,
como na edade média lhe chamavam os francos
ou latinos, andavam encarecidas na sua ambi-
ciosa phantasia. Era também então Alexandria
porventura mais florente e populosa do que nos
áureos tempos dos antigos Ptolemeus.
Ali conviviam em interesseira confraternidade
as gentes mais diversas pela raça, pelo idioma,
pela fé ; árabes da índia, do Yemen e de Hespa-
nha, negros e abexins, christãos da Europa do
norte e meio-dia. A todos os europeus levavam
os venezianos a vantagem. Assim ficava repar-
tido entre as duas republicas rivaes o principado
mercantil no Mediterrâneo.
Génova dominava no Mar Negro, Veneza cm
Alexandria. JEm concurso com estas poderosas
rainhas do Mediterrâneo, posto que em muito
inferior grau, participava largamente no com-
mercio do Levante a Catalunha, e principal-
VASCO DA GAMA 253
mente Barcelona, a sua mui florente e indus-
triosa capital.
Depois que Alexandria com o Egypto caíra
cm poder dos árabes conquistadores, o interes-
se mercantil, mais imperativo e efticaz do que o
zelo religioso, alcançara finalmente congraçar
no grande empório os mercadores christãos e os
musulmanos. Em vão os imperadores gregos
desde o ix século haviam prohibido aos vene-
zianos o traficar na Syria e no Egypto. Infru-
ctuosamente haviam os papas condemnado
todo o trato e commutação com os infiéis', a
ponto de julgarem boa presa em 1292 a carga
tomada por uma galé genoveza de Thedisio
Dória em um navio pisano, que de Alexan-
dria navegava carregado de valiosas mercado-
rias 2.
Era Malaca um dos empórios principaes
1 Peschel, Gesch. des Zeitalt. der Entdeck., pag. 2 5-20.
2 Na galé de Pisa, alem das fazendas pertencentes a
pisanos, vinham muitas por conta de mercadores de Mar-
selha e de Narhonna, e de outras partes, os quaes man-
daram seus agentes pedir á arrogante senlioria que lhes
deixasse as suas mercadorias; e ainda que, diziam os ge-
novezes, todos aquelles bens eram justamente confiscados,
\)OT haver o senhor papa no anno prccedenie sentenciado
22
254 VARÕES ILLUSTRES
doesta negociação e trato oriental. Ali vinham
concorrer o cravo das Molucas, a maça e a
noz de Banda, o sândalo de Timor, a cam-
phora de Bornco, o oiro e a prata de Lequios,
as drogas e as espécies aromáticas, os aromas e
manufacturas da China, de Siáo, de Java, e de
outras ilhas e regiões da Ásia e da Oceania.
Chegadas a Malaca, na phrase de João de Bar-
ros, empório e feira universal do Oriente, eram
escambadas contra diversas mercadorias aos po -
vos, que demoravam no litoral da península in-
dostanica e aos que mais ao occidente estancea-
ser licito a qualquer apresar as mercancias c vender como
escravos as pessoas, que fossem commerciar aos estados
do sultão do Egypto, ou de lá volvessem com seus car-
regamentos, os homens de Génova, di2 o seu annalista Ja-
copo Dória, restituíram aos amigos o que da nave pisana
lhes pertencia. uVerum cum de jure amisissent omnia per
sententiam domni pape (sic), qui sententiam durissimam
anno precederíti protulerat in quoslibet et quoscumque
euntes et redeuntes ad terram et de terra aliqua soldani
Egypti, qui etiam statuit quod quilibet posset cos capere
in personis et rebus et bona corum tenere tamquam pró-
pria et personas vendere velud (sic) sclavos ...» Annalcs
januenses, de Jacopo Dória, em Pertz, Monwnenta Gemia-
inae histórica, Hannov., i863, tom. xviii, pag. 341»
VASCO DA GAMA 25b
vam ate o Golpho Pérsico e o Mar Vermelho.
Calecut, na costa do Malabar, Gambaya, na en-
seada doeste nome, Ormuz, no estreito assim
denominado, Aden, na bocca do seio arábigo,
quasi competiam com Malaca na importância
e riqueza de seus tráficos. A estes portos acu-
diam, alem das riquezas de Malaca, os rubis e o
lacre do Pegu, os estofos e téla-s de Bengala,
o aljofre de Calecaré, os diamantes de Narsinga,
a canella e as pedrarias de Ceylão, a pimenta
e o gengibre, que abundavam em outras regiões.
De Ormuz se exportavam as mercancias, que
vinham destinadas á Europa, e eram pelo Gol-
pho Pérsico transportadas a Bassrah. D'aqui se
conduziam em caravanas, quaes para Arménia,
Tartaria e Trebisonda, quaes para as cidades de
Alepo e de Damasco, d^onde vinham expedidas
a Beyrut, porto da Syria no mar do Levante.
Ahi vinham os mercadores venezianos, genove-
zes e catalães, os três povos navegadores do Me-
diterrâneo, carregar em suas galés as especia-
rias e riquezas asiáticas e diííundil-as finalmente
pelos mercados europeus. As espécies e drogas
orientaes, que de Malaca iam ter ao Golpho Ará-
bigo, aportavam a Suez, situada no fundo d'este
sçio. As cáfilas e recovas as trasladavam até ao
256 VARÕES ILLUSTRES
Cairo e d'ahi se navegavam pelo Nilo até Alexan-
dria ^ Estes eram os roteiros, que seguiam as
riquezas do Oriente, quando as duas poderosas
republicas italianas na Europa meneavam, sem
que ninguém Ih^o podesse disputar, o sceptro
mercantil.
As viagens e peregrinações dos embaixadores,
missionários e aventureiros christãos, que da Eu-
ropa se dirigiram durante a edade média até os
últimos confins do continente asiático tiveram
bastante influencia no conhecimento das partes
orientaes e na sua communicação com as terras
do Occidente e contribuíram para dissipar as
névoas, que traziam encobertas aos francos ou
latinos aquellas opulentas regiões.
Poude então a christandade adquirir a seu
respeito mais exactas informações das que sou-
bera alcançar a antiguidade.
Ficaram memoradas na historia das viagens
durante o xni século as que por ordem do pa-
pa Innocencio IV emprehenderam vários frades
1 Barros, Decad. i, liv. viii, cap. i. — António Galvão,
Tratado dos descobrimentos antigos e modernos, cdiç.
de lySi, pag. 16 c 17.
VASCO DA GAMA 267
franciscanos c dominicos, sendo entre elles o
mais notável João de Plano Garpino, o qual
se adiantou em 1246 até Kaptschak, a corte de
Batu, segundo successor de Gengis-Khan. Pouco
depois em 1 248, outro religioso mendicante, An-
dré de Lonjumel, foi egualmente enviado pelo pa-
pa ao mesmo potentado oriental ^ Não licaram
menos celebradas nas historias as embaixadas,
que por ordem de S. Luiz foram á corte do grão
khan da Tartaria, a segunda das quaes desem-
penhou o franciscano Ru3^sbroek, conhecido vul-
garmente pelo nome afrancesado de Rubruquis.
Era tal, — e porque assim o digamos,— tão contí-
nua a corrente de missionados, mercadores, le-
gados e aventureiros entre a Europa occidental
e as regiões, onde na Ásia dominavam os mon-
goles, que na universidade de Paris, a metró-
pole e Alma mater das sciencias em toda a chris-
tandade occidental, se pensou em instituir uma
cathedra especial de lingua mongolica-.
» Ritter, G<?5c//. der Erdk. und der Entdeck., pag. 225.—
Peschcl, Gesch. der Erdk., pag. 1 5o.
2 Pcschel, Gesch. der Erdk., pag. 1 5o, citando a Abel
Rcmusat, Rapports dcs princcs chrcticus avcc Ic ij^rand cm-
258 VARÕES ILLUSTRES
A fama de Marco Polo eclipsa porém nos fas-
tos das viagens terrestres ao Oriente a gloria dos
que o precederam ou seguiram na carreira.
Marco Polo apparece na edade média como um
assombro de maravilhosas aventuras, e é preciso
que os portuguezes se revelem á Europa, circum-
dados de uma aureola immortal pelos seus pas-
mosos descobrimentos, para que se esconda na
penumbra o vulto quasi homérico do peregrino
de Veneza. Marco Polo é na edade média o via-
jante mais celebrado pela extensão das suas
arrojadas excursões até ás ultimas regiões do
Oriente. Ao illustrc mercador veneziano pre-
cederam nas longas peregrinações os dois ir-
mãos Nicolau e Mafio Polo, logo depois de
mediado o século xiii. Na segunda viagem ao
Oriente, foram acompanhados de Marco Polo,
filho de Nicolau. As jornadas do grande aven-
tureiro duraram vinte e quatro annos a con-
tar de 1271, em que de Veneza abalou para
as terras orientaes. É immenso, admirável o
trajecto do temerário viajante em tempos de tão
pÍ7'e des mongóis, nas Mcni. de Vacad. des iiiscript. (de
Vlnstiiut.)^ tom. vi, 1822, pag. 398-469 e 41 5.
VASCO DA GAMA 'ibg
difficil c penosa communicação entre paizes apar-
tados por milhares de léguas de caminho.
Desde Lajarzo percorre Marco Polo a grande
via commercial, que se dirige a Tauris, e cos-
teando as terras litoraes do mar Caspio, atra-
vessa as regiões ubérrimas do Iran, lustra de-
pois pelos desertos o caminho, que de Ormuz
vae discorrendo por Kerman e pelo oásis de
Ghubbis até ás serranias, onde brotam as nas-
centes do Jihun. D^ali adianta suas jornadas
ate o Turkistan chinez, visitando de caminho
Kaschgar, larkand e Chotan. Segue depois até
Xandu e d'ali á cidade de Pekin^ Alguns his-
toriadores da geographia tem professado a opi-
nião de que as viagens do celebre mercador
veneziano contribuíram escassamente para o
progresso dos conhecimentos geographicos acer-
ca do Oriente, taes como na edade média ap-
parecem revelados na sua cartographia- e que
apenas nos mappas do século xv principia a
conhecer-se a influencia de Marco Polo-^. Não
1 Peschel, Gesch. der Erdk., pag. 1 58 e scg.
2 Vise. de Santarém, Hisl, de la Cosiii. et de la Car-
togr.j iij introd., pag, lii.
3 Vise. de Santarém, Hist. de la (j>sni. et de la
Cartogr., iii, introd., pag. xvm.
26o VARÕES ILLUSTRES
podemos, todavia, com outros não menos au-
ctorisados escriptores, desconhecer que o no-
me de Marco Polo andou proverbial até que
as viagens portuguezas e o descobrimento de
Colombo, quasi inteiramente o obliteraram.
A sua influição nas próprias aventuras portu-
guezas e principalmente na empreza romanesca
do immortal navegante genovez, não pôde his-
toricamente contestar-se. Se outro mérito não
teve o audaz explorador, as suas narrativas
hyperbolicas acerca do Gathai e de Zipango, e
da magnifica cidade de Quinsay, accendendo a
phantasia dos povos europeus occidentaes, em
grande parte contribuíram para estimular o de-
sejo de ligar por mais frequentes, seguras e fá-
ceis relações o Occidente ás fecundas regiões
orientaes'.
A contar de Marco Polo succedem-se os aven-
tureiros viajantes, que vão peregrinando ás ter-
ras da Ásia. O franciscano João de Monte Cor-
vino c enviado pelo papa ás índias e á China, e
funda os primeiros bispados em Pekin e em
Kollam. Continua a communicação da Europa
Peschel, Gesch. der Erdk , pag. i6o.
VASCO DA GAMA 2()I
com O ultimo Oriente o franciscano Odorico de
Pordenone em 1 3 1 6. João de Marignola em 1 342
chega a Pekin, e apresenta-se na corte do impe-
rador como legado do pontiíice romano'.
Os religiosos minoritas, os legados pontifí-
cios, ou reaes, e não menos os aventureiros,
incitados pela risonha perspectiva de ganâncias
quantiosas nas terras orientaes, atravessam pre-
surosos desde as extremas do Occidente europeu
até ás regiões da Ásia central e aos confins der-
radeiros do Oriente. Não é unicamente o fervor
de ampliar e extender os limites da christanda-
de, nem a curiosidade scientifica, o móbil princi-
pal das viagens e peregrinações. Os thesouros
• orientaes desafiam e aguilhoam a cubica. Gomo
succede sempre em todos os descobrimentos de
novos e apartados territórios, aos estímulos mo-
raes vem alliar-se em sobeja proporção a saci^a
fome do oiro, o desejo de feitorisar em próprio
beneficio as riquezas dos paizes, que se afiguram
melhor aquinhoados do que a pátria pela pró-
vida mão da natureza. Ao lado do missionário,
que marcha sonhando a conversão das novas
gentilidades, caminha o mercador egoísta, que
« Peschel, Gesch. der Erdk., pnq. 163-164.
262 VARÕES ILLUSTRES
vae delineando a commutação usurária dos pro-
ductos^
Séverac, Pascual deVictoria, o mercador flo-
rentino Balducci Pegoletti, agente ou commis-
sario da opulenta e celebrada casa mercantil dos
Baldi, de Florença, esparzem pela Europa as no-
ticias d^aquellas remotas regi5es, até que o in-
glez João de Mandeville, aproveitando e plagian-
do as viagens de Odorico de Pordenone^, re-
nova em certa maneira a fama de Marco Polo,
e merece com justiça a mesma reputação de fa-
bulador, que muitos imputaram injustamente
ao viajante veneziano e ao nosso eminente por-
tuguez Fernão Mendes Pinto.
As communicações com o grande império chi-
nez perseveram mais ou menos animadas e fre-
quentes desde a enviatura de Plano-Carpino, em
1246, até João de Marignola, um século depois.
Desde então até os maravilhosos descobrimen-
tos portuguezes interrompe-se a communica-
ção da Europa com a Ásia central e as remo-
tas regiões do Oriente. Apenas duas viagens
memoráveis se realisam durante esse interstício.
Peschel, Gesch. der Erdk., pag. 157-1 58.
Peschel, Gesch. der Erdk., pag. 163-164.
VASCO DA GAMA 203
A primeira é a do hespanhol Ruy Gonzalez de
Glavijo, enviado em 14 14, pelo rei de Gastella,
em embaixada a Samarkand, que o celebrado
conquistador Tiniur havia constituído o principal
e grande empório de toda a Ásia centraP.
O veneziano Nicolau Conti, que principia as
suas largas e diuturnas peregrinações em 1424,
é o ultimo dos que em viagens terrestres se
adiantam muito ao longe nas terras orientaes.
Conti é pela duração das suas excursões e pelo
copioso pecúlio de noticias, com que additou as
de Marco Polo, aquelle que depois do grande
explorador veneziano mais poderosamente con-
tribuiu para diffundir na Europa valiosas infor-
mações a respeito do Oriente. Foi elle o único
viajante, que na primeira metade do xv século
chegou até á índia e traspassou para alem as
suas fronteiras. No seu regresso á Europa, em
I «Bis zu den portugiesischen Entdcckungcn, mit
einer einzigen Ausnahme, kciní; Kunde aus Indicn odcr
China Europa erreichte. In dieser Zwischcnzeit gclangtc
allerdings derspanische Botschafter Ruy Gonzalez de Gla-
vijo imJahre 1404 nach dem lieblichen Samarcand, wel-
ehes Timur zum ersten Handelsplatz in Mittelasien erho-
ben hatte.» Pcschel, Gesch. der Erdk., pag. i65.
264 VARÕES ILLUSTRES
vez de. seguir, como os outros viajantes euro-
peus, o caminho das steppes asiáticas ou vol-
tar pela Pérsia até Ormuz, visitou no Mar Ver-
melho a ilha de Socotorá e os portos de Aden
e Djiddah'.
A poderosa supremacia dos mongoles e Gen-
gis-Khanides na Ásia, e a fundação de novas mo-
narchias, inliuiram beneficamentc na ligação do
Occidente ao Oriente, facilitando no século xni
o trato mais frequente entre o mundo latino e
a China, então sujeita e dominada pela dynas-
tia mongol, instituída por Kublai-Khan, o gran-
de imperador, em cuja corte figurou honrosa-
mente o celebrado veneziano Marco Polo.
Mas quando a edade média vae declinando
para o seu occaso, uma nova potencia barbara
apparece na scena da historia e obriga a chris-
tandade a propor em novas condições o pro-
blema do seu commercio com o Oriente.
Os turcos interrompem a passagem pelos ca-
minhos da Ásia central e do Mar Negro, e ao
mando de Mahomet II apoderam-se afinal de
Constantinopla, ameaçando perturbar a Europa
inteira com as suas incursões.
I Pcschcl, Gcsch. der Erdk., pag. 1 65- 107.
VASCO DA GAMA 26Õ
Mais tarde, em t5i7, o imperador Selim faz
do Egypto uma nova conquista dos Osmanlis, c
fica também cerrado o Mar Vermelho ao com-
mercio dos europeus com o Oriente.
A vida mercantil decae inteiramente no Me-
diterrâneo, que depois de ser por tantos séculos
desde a antiguidade mais remota a grande scena
das mais fecundas civilisações, agora está por
assim dizer deserto e condemnado por três sé-
culos a uma quasi completa ociosidade.
Mas já antes que esta lastimosa mutação no
commercio da Europa com a Ásia estivesse con-
cluída, a christandade do Occidente sentia a
necessidade crescente e imperiosa de rasgar novo
caminho e arrojar-se em rota mais directa que
as antigas para as cubicadas terras do Oriente.
Era este o grande problema económico e
mercantil da edade média a contar do xiii século.
A linha seguida pelas caravanas, que da índia
e da China vinham demandar os territórios do
Ponto Euxino, e a derrota, que traziam as mer-
cadorias orientaes desde os portos da sua expe-
dição até Alexandria, eram trabalhosas, demo-
radas, custosissimas no preço e na fadiga. Eram
innumeraveis os intermediários, por que vinham
passando as produccões, os fretes dispendiosos,
■23
206 VARÕES ILLUSTRES
pesados, e a cada passo repetidos os direitos e
alcavalas nas alfandegas do transito.
Eram enormes as diííerenças entre os preços
das especiarias carregadas em Calecut e os va-
lores exorbitantes, por que vinham vender-se a
Alexandria * .
Qual, porém, se afigurava ser o caminho
mais seguro e directo para a índia? Era, atten-
tas as condições actuaes do problema, a der-
rota audaz pelo Oceano.
O centro de gravidade do S3^stema commer-
cial no XV século deslocava-se naturalmente do
mar interior e limitado para o litoral atlântico
da Europa.
Veneza, Génova, Pisa, Catalunha tinham mo-
nopolisado o trafico do Oriente, emquanto flo-
reciam com as mercancias asiáticas os portos do
Mar Negro e Alexandria.
Era bem que surgisse agora um povo de
mais intrépidos navegadores para traçar, não os
breves e fáceis caminhos do Mar Mediterrâneo,
mas a larga e perigosa estrada do Oceano.
í Roteiro da viagem de Vasco da Gama, 1861, pag. 1 1 5.—
Christ. Theoph. von Murr, Histoire diplomatiqiie dii che-
valier \L Behahih Patis, 1802.
VASCO DA GAMA 267
Portugal herdou então o sceptro mercantil, que
tombava das mãos desfallecidas á republica de
S. Marcos, á princeza do Adriático.
Os povos mercadores do Mediterrâneo com-
pravam submissamente as especiarias. Seria
agora mais expedito e mais barato tomar posse
das próprias regiões, onde cresciam, e receber
com o ferro nas mãos como tributo, o que os ou-
tros acceitavam como favor de mouros e gentios.
Aos povos, que somente mercadejam no
Oriente, succede um povo batalhador, que se
prop5e a conquistal-o.
A índia — e sob este nome entendia a edade
média não somente a península indostanica, a
de Malaca ou a áurea Chersoneso dos antigos,
e as ilhas, que lhe demoram para o sul, se não
também todas as mysteriosas regiões do ul-
timo Oriente, — a índia era o sonho ebúrneo
de quantos anhelavam desquitar-se da sua po-
breza ou mediania com os despojos opimos de
terras opulentas, onde, segundo as lendas me-
dievas, as cidades tinham muralhas altíssimas
de prata, crespas de torres alterosas de oiro
fino'. A idéa d'este maravilhoso novo mundo.
I Peschei, Gesch. des Zeitalt. der Entdek., pag. 17.
268
VARÕES ILLUSTRES
cujas grandezas transpareciam das hyperboli-
cas narrativas dos missionários e peregrinos,
principalmente de Marco Polo, de Conti, de
Odorico de Pordenone, e do mentiroso Man-
deville, andava associada uma noção, que só
por si constituía um dos themas mais fecundos
á romanesca imaginativa dos cartographos du-
rante a edade média.
Era havido como crença inabalável que na
índia florecia um grande império, onde a lei de
Ghristo contrastava com as gentílicas trevas
das outras regiões orientaes, e que ali domina-
va um forte potentado, que, cifrando na sua
majestade em intima alliança a soberania tem-
poral e a espiritual supremacia, era ao mesmo
passo sacerdote e imperador. Este príncipe
christáo, cujos estados não era fácil assignar
no mappa-mundi, era o famoso Preste João,
ou o Precioso João, como Damião de Góes pre-
fere appellidal-o ^ Quem era porém esta mara-
vilhosa personagem? Em que parte das índias
assentava a sua morada ? Qual era o caminho,
que haveria de levar quem do Occidente fosse
I Dam. de Góes, Chron. de D. Manuel, part. iii, cap. lxi,
foi. 233.
VASCO DA GAMA 269
em sua demanda ? Os geographos não respon-
diam uniformes. As cartas não eram mais con-
cordes em demarcar no pergaminho os seus
dominios. E todavia os papas, as republicas,
os principes, os que invejavam as riquezas do
Oriente, e os que desejavam sinceramente dila-
tar por ali a christandade, ardiam no anceio de
ter por amigo, alliado e fautor em suas empre-
zas aquelle encantado Preste João. Já o infante
D. Henrique dirigira em parte as suas nave-
gações no propósito de alcançar e descobrir as
terras doeste principe christão.
Duvidam alguns historiadores sobre se o in-
fante D. Henrique ao cogitar e pôr em obra a
traça grandiosa de suas atlânticas navegações,
tivera em mente o descobrir o caminho maríti-
mo da índia'. Se nos pautados, quasi tímidos
começos de suas navegações, não era este o fim
immediato, a que tendia o seu empenho gene-
roso, não se pôde contestar que este foi em seu
espirito o alvo, a que se haviam de encaminhar
as suas emprezas, se a edade e a fortuna lh'o
tiveram consentido. Das palavras de Azurara se
» Peschcl, Gcsch. des Zcitalt. der Eutdeck.
270 VARÕES ILLUSTRES
deprehende que o infante anhelava por saber no-
ticias e informações acerca da índia e d'aquelle
soberano mysterioso, que trazia occupada pe-
rennemente a phantasia dos geographos durante
a edade média, o rei-sacerdote, o famoso Preste
João*.
A noticia do enigmático Preste João appare-
ce a primeira vez na Europa, cerca do meado
do século XII, trazida por um bispo oriental e
é divulgada por Otto de Freisingen, o mais an-
tigo historiador, que d'aquelle potentado chris-
t Compendiando Azurara os motivos, que haviam de-
terminado o infante a mandar descobrir as terras para
alem do cabo Bojador, assigna d'este modo a quarta
ra^ão. «A quarta razom foe, porque de xxxj annos, que
havia que guerreava os mouros, nunca achou rey chris-
tiaão, nem senhor de fora d'esta terra, que por amor de
nosso senhor Jhíi Xpó o quisesse aa dieta guerra ajudar.
Querya saber se acharyam em aquellas partes alguiís
prittcipes xpaãos em que a caridade e amor de Xpõ fosse
tani esforçada, que o quisessem ajudar contra aquelies
inimigos da fé.» Azurara, Chron. do descobr. e conq. de
Guiné, cap. vii, pag. 46-47. — «Nom soomente daquella ter-
ra desejava daver sabedorya, mas ainda das Indyas e da
terra do Preste Joham, se seer podesse.» Azurara, Chron.,
cap. XVI, pag. 94.
VASCO DA GAMA 27 1
tão do Oriente faz memoria'. O celebrado
viajante franciscano Guilherme de Ruysbroeck
menciona-o sob o nome de Corchan de Corachi-
ta, ou da China e assigna-Ihe o império na alta
Ásia. Segundo Gustavo Oppert% o Preste João
era um soberano, que tendo os seus estados na
China septentrional e pertencendo á dynastia
Leáo, perseguido e desthronado pelos tártaros
fundadores da dynastia Kin, deixou com uma
horda do seu povo, — os carachitas, — o antigo
território e com o titulo de Corchan instituiu
um novo império, que decorria desde o Altai
até o lago AraP. O veneziano Marco Polo,
ainda colloca na Ásia, na Tartaria, o famige-
rado Preste João, como rei ou imperador dos
carachitas^ e dá como sujeitos á sua domina-
ção os povos enigmáticos de Gog e de Magog^
Os cartographos na edade média, cubiçosos
1 Peschel, Gesch. der Erdk., pag. i53.
2 Der Presbyter Johannes (O Preste João) Berlim,
1864, cit. em Peschel, Gesch. der Erdk., pag. i53.
3 Peschel, Gesch. der Erdk., pag. 1 53.
4 Peschel, Gesch. der Erdk., pag. i5(j.
5 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
tngr., III, pag. 333.
272 VARÕES ILLUSTRES
de enriquecer as suas cartas com as lendas geo-
graphicas mais acceitas á phantasia popular,
principiam desde o século xiv a assignar geo-
graphicamente ao Preste João os seus estados.
A principio é na Ásia que, segundo elles, reina
o mysterioso potentado. No mappa-mundi de
Ranulpho Hygden, do século xiv, — o primeiro
monumento, em que figura o famoso dynasta-
sacerdote, — o seu reino é representado na Tar-
taria ' .
O mappa-mundi do Chronicon de i32o des-
loca o Preste João desde as ásperas paragens
da Ásia septentrional para lhe dar na índia
assento e moradia 2.
O veneziano Marino Sanuto no xiv século
assigna-lhe os estados na índia inferior'^, que
segundo a carta do museu Borgia, de 1404,
devia ser um synonymo da China ou do Gathai^.
1 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la CaV'
togr.^ III, pag. XX e 10.
2 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
tofrr., III, pag. XX.
3 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., III, pag. 195.
4 N'esta carta ao Oriente do rio Ganges está escripto
este letreiro : «índia inferior... magni Canis imperatoris
VASCO DA GAMA '2']'Ò
Os cartographos deixam ainda por algum tempo
estanciar o famoso Preste João nas primitivas
regiões do seu império fabulado. O mappa-mun-
di do palácio Pitti, de 141 7, conserva ainda a
nebulosa personagem junto a uma [cadeia de
montes, que terminam no golfo de Gorêa e
apresenta desenhadas as torres construidas pelo
Preste para obstar ás incursões hostis nos seus
domínios.
No século XV o Preste João é transportado
pelos cartographos á Africa oriental. Emquan-
to a carta do palácio Pitti ainda obedece á an-
tiga tradição, o mappa-mundi do manuscripto
de Pomponio Mela, na bibliotheca de Rheims,
que tem a mesma data de 141 7, converte em
príncipe africano o velho Preste João, que nos
séculos precedentes fora tártaro ou chinez^
No mappa-mundi do museu Borgia, do sécu-
lo XIV, o rei-sacerdote tem a sede dos seus es-
tados em a Núbia christan, e a munificência do
cartographo extende-lhe os estados por todo
tartarorum sedes.» Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm.
et de la Cartogr., iii, pag. 274.
I Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., III, pag. XXI.
274 VARÕES ILLUSTRES
O litoral do Atlântico desde Gades até o cha-
mado Rio do Oiro^ De maneira que segundo
este monumento cartographico, as duas predi-
lectas aspirações da edade média, o Preste João
e o Rio do Oiro, o mysterioso potentado chris-
táo do Oriente e a região maravilhosa do me-
tal mais cubicado, se haveriam de encontrar nos
domínios do mesmo rei.
O veneziano Andrea Bianco, no mappa-mun-
di pertencente ao seu notável portulano de
1456, figura as terras do Preste João acima de
Zanguebar^.
A carta de Leardo, de 1448, situa o reino
do Preste junto da que ali vem designada com
o nome de Ethiopia do Egypto^.
No século XV o errabundo Preste João, pelo
consenso dos cartographos, assenta de vez a
1 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de Ia Ca)'-
togr., III, 295-296.
2 Vise. de Santarém, Hist. de la Cosm. et de la Car-
togr., III, 390. No mappa-mundi o letreiro eorresponden-
te ao reino do Preste, é no latim bárbaro dos cartogra-
phos. «Imperiwu prete Janis.»
3 Vise. de Santarém, Hist. dela Cosm, et de la Carto-
gr., III, 436.
VASCO DA GAMA 2'j5
sua morada nas terras da Abyssinia, onde já
desde largo tempo se davam como existentes
numerosas christandades. No século xiv é o fran-
ciscano Marignola o primeiro viajante, que dá
noticia de um Preste João africano, assim
como antes d^elle Ru3^sbroeck e Marco Polo
haviam divulgado a existência de um asiático
Preste João. Era desde antigos tempos já sa-
bido que no v século Nestorio, patriarcha de
Constantinopla, condemnado no concilio de
Epheso pela heresia de attribuir a Ghrísto duas
pessoas, uma divina e outra humana, sem união
hypostatica ou substancial, fora forçado a dei-
xar a sua cathedral e a sair do império grego
do Oriente e que muitos dos seus proselj^tos
tinham fundado na índia, na Ásia central, e
talvez na China ê na Tartaria egrejas e com-
munas de christãos; Os Eutychianos ou mono-
physitas, outros herejes do v século, que ao
revez de Nestorio^ não reconheciam em Jesu-
Christo senão uma só natureza, apesar de con-
demnados no concilio de Chalcedonia haviam
diffundido a sua heresia por muitas regiões
orientaés c fundado egrejas na Abyssinia, onde
os christãos separados da communhão romana
eram chamados jacobitas.
276 VARÕES ILLUSTRES
A noção confusa, que d'estas christandades
orientaes chegara á noticia dos europeus desde
os primeiros tempos das cruzadas, deu origem
ao mytho de que um grande potentado, meio
sacerdote e meio imperador, residia nas terras
do Oriente.
A imaginação da edade média corporificou na
pessoa do Preste João a cliristandade oriental.
Buscando affinidades entre esta personagem
singular e a lenda, que suppunha ainda existen-
te o discípulo dilecto do Redemptor, chegava
a mais phantasiosa credulidade a professar que
na purpura do Preste vivia transfigurado o pró-
prio evangelista S. João'.
Os principes christãos anceiavam por desco-
brir o famoso imperador e têl-o por amigo e
alliado contra os soberanos gentios ou musul-
manos do Oriente. Quando no século xiv e no
XV principalmente 2 o 1- reste João foi trasladado
pelos viajantes e cartographos desde a índia ou
a Tartaria até ao Habesh, ou Abyssinia, já des-
1 Ritter, Gesch. der Erdk. iind der Entdeck., pag. 224.
2 Vise. de Santarém, Recherches sur la priorité dcs dé-
couvertes, etc., pag. 283.
VASCO DA GAMA 277
de muitos annos existiam relações entre os pon-
tifices romanos e os christãos jacobitas d^aquella
região' .
Parece averiguado que o imperador abexim
em 1427 enviara uma embaixada a el-rei AíTon-
so V de Aragão^.
O figurar-se na Europa o rei ou imperador da
Abyssinia, como simultaneamente sacerdote e
soberano temporal, teria porventura sua origem
em que elle era ainda mesmo no espiritual,
como se fora o chefe da sua egrcja, á similhança
do que succede com os reis de Inglaterra a
respeito da egreja anglicana depois de reforma-
da e com os autocratas da Rússia no que per-
tence á egreja chamada grega-orthodoxa-^.
1 Peschel, Gesch. der Erdk., pag. i(38.
2 Vise. de Santarém, Recherchcs siir la priorité dcs dc-
coitverteSj ctc., pag. 322.
3 «Em todo o reino (na Abyssinia) se nam íaz mais no
espiritual que o que o Emperador quer, consultando seus
sacerdotes e cabeças dos mosteyros de seus frades, tendo
os Empcradores usurpado pêra sy impia e tiranicamête
todo o governo espiritual.» Fr. António de Gouveia, Jor-
nada do arcebispo D. Alei.vo de Meneses, etc. Coimbra
1606, foi. 17 vcrs.
24
278 VARÕES ILLUSTRES
Desde as primeiras navegações ordenadas pelo
infante D. Henrique até os últimos tempos de
D. João II, o Preste João foi sempre uma das
mais instantes preoccupações dos que tinham
postos na índia os olhos da sua cubica, e anhe-
lavam por fazer do famoso rei-pontitice o ajuda-
dor mais efficaz das suas ambições no Oriente'.
Ao passo que os navegantes portuguezes iam
adiantando mais e mais nas suas viagens ao
longo da costa de Africa, não se descuidava
D. João II de mandar exploradores, que por
terra adquirissem também informações das par-
tes orientaes.
Para as terras do Preste despachava o rei de
Portugal a Fr. António de Lisboa e Pêro de
1 «... O Preste João das índias, tão nomeado em toda
Europa, por ser um príncipe tão grande e tão podero-
so, como os escritores delle diziam, e Christão, cõ que
os Portugueses se pretendiam liar, pêra se favorecerê
hus a outros e depois de terem conhecimento do Reyno e
Império dos -abexins, a que chamão Preste João, por
não acharem outro Príncipe Christão poderoso n'estas
partes... procurarão de o reduzir com toda a christandade
d'aquelle Império á obediência da santa Igreja Romana.»
Fr. Ant. de Gouveia, Jornada do arcebispo D. Aleixo dé
Meneses, Coimbra, 1606, li. 18.
VASCO DA GAMA 279
Montarroyo, os quaes não ousaram adiantar-se
á Abyssinia por não saberem o idioma arábigo'.
Depois mandou el-rei D. João II a descobrir
o Preste João, e a terra, d^onde vinha a espe-
ciaria, a Pêro da Covilhã e AlTonso de Paiva-, a
quem Gaspar Corrêa, negando-lhe a naturalidade
portugueza, chama Gonçalo de Pavia '^, os quaes
depois de jornadearem juntos até Aden, se apar-
taram um do outro, indo Pêro da Covilhã até á
índia, e Aílbnso de Paiva para a Ethiopia, se
pomos fé no que se lê nas Décadas de Barros,
na Historia de Castanheda ^ e no livro de Fran-
cisco -Alvares 5, onde o Preste apparece com o
1 Barros, Decad. i, liv. iii, cap. v.
2 Castanh. Hist. do descobr. e conq. da índia, liv. 1,
cap. I.
3 Rarrosj Decad. i, liv. iii, cap. v— Gasp. Corrêa, Len-
das da índia, tom. i, part. i, cap. i, diz «chamado Gon-
çalo de l^avia, de casta canário, que falia va castelhano».
4 Gaspar Corrêa inverte os destinos dos dois explora-
dores, fazendo partir para a índia a Gonçalo de Pavia, e
logo directamente as terras do Preste a Pêro da Covi-
Ihan.
3 F. Alvares, Verdadeira informação das terras do
Preste João, part. i, cap. cm.
28o var5es ILLUSTRIÍS
seu verdadeiro nome de Negii^^ com a signi-
ficação de rei.
Pêro da Covilhã depois de visitar Calecut,
n'aquelle tempo o grande empório da índia, e
as cidades de Goa e Cananor, foi ter ao Cairo,
onde achou nova que era ali fallecido o compa-
nheiro. E encontrando dois judeus, Joseph e
Rabi Abraham, que D. João II despachara havia
pouco áquellas regiões orientaes, mandou pelo
primeiro a el-rei as informações, que a respeito
da índia alcançara em suas viagens. E como pe-
los dois judeus o soberano lhe encommendára
que se não tivesse achado ainda o Preste, se
esforçasse em o buscar, foi Pêro da Covilhã á
corte do monarcha da Abyssinia-, onde viveu
por muitos annos, porque o Neguz lhe recusou
a permissão de sair dos seus estados, segundo o
estylo, usado em sua corte com todos os foras-
teiros que uma vez aportavam ao seu império^.
No anno seguinte áquelle, em que de Portu
gal haviam partido Pêro da Covilhã e Aflbnso
1 F. Alvares, Verdad. inform., etc, pnrt. ii, cnp. ix.
2 Barros, loc. cit. Castanheda, loc. cit.
3 F. Alvares, Verdad. inform.^ etc, part. i, cap. cm.
VASCO DA GAMA 28 I
de Paiva, teve D. João II informações a res-
peito do Preste João e seus dominios por um
frade ou clérigo abexim, que de Roma lhe envia-
ram, e a quem João de Barros dá o nome de
Lucas Marcos ^ Por este mensageiro escreveu
o soberano portuguez ao Preste João. Por aquel-
les tempos chegava da viagem memorável, em
que descobrira finalmente o cabo Tormentório,
o navegador Bartholomeu Dias com o seu com-
panheiro João Infante-.
Partira o intrépido mareante em 1486, levan-
í Barros, Decad. i, liv. iii, cap. v.
2 Em todos os historiadores das nossas navegações se
attribue o mando da expedição naval, que descobriu o
cabo da Boa Esperança, a Bartholomeu Dias. Gaspar
Corrêa, nas Lendas da índia, discorda inteiramente d'esta
versão. Na sua narrativa nem apparece memorado o nome
de Bartholomeu. No logar d'elle Gaspar Corrêa põe
João Infante, homem estrangeiro tratante, (quer dizer ne-
gociante ou mercador) que muitas ve:^es vinha a Lisboa,
que muito sabia da arte de navegar, e a este, segundo a
narração das Lendas, enviou D. João II com quatro cara-
vellas a correr a costa de Benim e a descobrir quanto po-
desse alem do que já era conhecido. Gaspar Corrêa não
conta que d'esta vez fosse descoberto o cabo da Boa Es-
perança, antes artirma que á volta de João Infante lhe as-
segurou D. João II que lhe mandaria construir navios
282 VARÕES ILI.USTRES
do por encargo descobrir a índia e o encoberto
Preste Joáo, cujo nome andava inseperavelmente
associado á desejada região da especiaria, e de
quem D. João II tinha fé que seria auxiliado na
empreza de ligar o Oriente a Portugal ^
O temeroso cabo, baptisado pelo seu desco-
bridor com o nome de «Tormentoso)», chrismou-o
o rei, como em signal de fausto auspicio, e pre-
nuncio de venturosas navegações, chamando-lhe
Gabo da Boa Esperança, com que ainda hoje
attesta ao mundo o grande feito naval dos por-
tuguezes e assignala o primeiro estádio n^iquella
empreza memorável, gloriosamente concluída
pelo immortal Vasco da Gama.
grossos e fortes, segundo elle desejava, para descobrir o
cabo da Boa Esperança, que com as caravellas não pode-
ram descobrir. São estas que pomos em itálico as palavras
textuaes do autor das Lendas. Gasp. Corrêa, Lendas da ín-
dia, tom. I, part. i, cap. 11.
I «E porque n'este tempo delrey D. João, quando fat-
iavam na índia, sempre era nomeado um rey mui pode-
roso, a que chamavam Preste João das índias, o qual di-
ziam ser christão, parecia a elrei que per via deste podia
ter alguma entrada na índia.» Barros, Decad. i, liv. iii,
cap. IV.— Gastanh., Hist. do descobr. e conq. da índia,
liv. I, cap. 1.
índice
Cap. Pag,
I — OsCCLllo XV 3
II — O tempo dos grandes descobrimentos ... i3
III — Portugal e as nações civilisadoras 23
IV — O que determinou Portugal aos grandes des-
cobrimentos 33
V — -A civilisação portugueza no século xv . . . 47
VI— As navegações na costa de Africa durante a
antiguidade 57
VII — As navegações na costa de Africa durante a
antiguidade (continuação) 79
VIII — A sciencia geographica na antiguidade . . . 95
IX — A geographia da edade média ii5
X — A geographia dos árabes i3i
XI — As lendas geographicas da edade média . . 145
XII — Os navegadores extrangeiros na costa de
Africa antes do infante D. Henrique . . . 171
XIII — Os navegadores portuguezes na costa de
Africa antes do século XV 193
XIV — As navegações c descobrimentos portuguezes
desde o xv século até Vasco da Gama . . . 209
XV — As antigas communicações com o Oriente. . 235
GALERIA
DE
VARÕES ILLUSTRES
DE PORTUGAL
POR
J. M. LATINO COELHO
N." I— Luiz de Camões i^í^ooo réis
N.0 2— Vasco da Gama:
Primeira parte — Os Precursores
DE Vasco da Gama i.^í^ooo »
NO PRELO
N." 2 —Vasco da Gama — Segunda parte i.'?!^ooo
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